Excerto do texto mencionado:
O fascismo renasce em Portugal (artigo de 08-10-2021)
Dentro desse quadro mais geral, a crise capitalista iniciada em 2007/08 nos Estados Unidos atingiu Portugal com força em 2011. Um conjunto de imposições da Troika, a junção da Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Central Europeu (BCE) junto do governo neoliberal e pró-austeridade de Pedro Passos Coelho em Portugal promoveram um gigantesco empobrecimento da classe trabalhadora.
O partido Chega! (que já foi Basta!) desponta no espaço político-eleitoral português no ano de 2019, quando obteve 1,3% dos votos nas eleições legislativas, conseguindo eleger o seu primeiro deputado. Nas eleições presidenciais de janeiro deste ano, o seu líder Ventura, apoiado pelo Chega!, alcançou 11,90% dos votos e ficou em terceiro lugar. Nas eleições municipais de 26 de setembro do deste ano, o partido conseguiu eleger 19 vereadores em sete grandes municípios (distritos) – muito abaixo do esperado.
Contudo, com dois anos participando na arena eleitoral, conseguiram apresentar mais força de enraizamento local do que partidos da esquerda portuguesa com mais de vinte anos. As forças antifascistas portugueses estão atentas, entretanto, há segmentos da esquerda que duvidam muito da real força fascista, pois existe uma forte memória histórica da Revolução dos Cravos e uma viva cultura-política da luta antifascista dos tenebrosos anos do salazarismo.
Com muitos despejos, um movimento emigratório como só tinha acontecido no Estado fascista de Salazar, o sistema político entrando em crise, se verifica pelo aumento constante das abstenções e ainda três elementos cruciais para se entender a emergência de um movimento protofascista com amplitude no tecido social português: a) imigração; b) os ciganos; e c) aspectos da formação social portuguesas pós-Revolução de 25 de abril.
O fator anti-imigração como um elemento mobilizador desse movimento político reacionário é recorrente e em Portugal, não é diferente. Contudo, é preciso compreender concretamente o trabalho imigrante para o funcionamento do capitalismo neoliberal. Isto é, a força de trabalho dos imigrantes é uma forma de acumulação (e também expropriação) do capitalismo. Em outras palavras, quanto maior o exército internacional de trabalhadores excedentes no centro do sistema – ou seja, pessoas imigrantes desempregadas (sem documentos muitas vezes) dispostas a encarar qualquer tipo de trabalho (em condições precárias e insalubres) com um salário menor do que “os nacionais” – possibilita o aumento à taxa acumulação. As burguesias lucram com o trabalho imigrante e ao mesmo tempo apontam o imigrante como o “grande perigo” da sociedade, bem como estimulam (diretamente ou indiretamente) movimentos políticos reacionários ou fascistas que procurem oprimir as comunidades imigrantes, tanto do ponto de vista subjetivo, como do institucional e estrutural.
O “inimigo sub-humano” supostamente causador dos muitos problemas de Portugal “são” os imigrantes em geral, segundo os discursos da extrema direita. Mas, o “inimigo-mor” — criado artificialmente pelos reacionários portugueses — é a comunidade cigana. Uma etnia de tradição milenar e que chegou a Portugal no século XV. Ventura, o único deputado que a extrema direita têm na Assembleia da República, costuma dizer, infelizmente, que os ciganos são “subsídio-dependentes”, isto é, que eles vivem do “bolsa família” (que se chama Rendimento Social de Inserção- RSI) e que são um peso para o Estado.
Isso é muito similar à lógica que o bolsonarismo utiliza no Brasil para dizer que o pobre vagabundo, na sua maioria não-branco, vive por meio do subsídio do Estado e que não quer trabalhar, entre outras muitas mentiras. Nesse sentido é importante sinalizar algo acerca da questão racial.
Nas Américas como um todo, que teve a sua formação social construída em cima do comércio e do trabalho de pessoas escravizadas, o marcador racial é, sobretudo, o ser não-branco. Na Europa esse marcador racista atinge, historicamente, e hoje notadamente, o imigrante, ou seja, os não-brancos e não-europeus: os latinos, os africanos, os asiáticos, os eslavos (de onde vem a palavra escravo), os ciganos e afins. Portanto, compreender a relação entre a imigração e o racismo na realidade europeia é crucial, pois é um elemento mobilizador para esses movimentos reacionários e fascistas: uma postura racista de negação da humanidade do imigrante.
Essa realidade, ganha, infelizmente, contornos particulares em Portugal, a partir de três fraturas da formação social pós-Revolução de 25 de Abril 1974, as quais nunca foram “tratadas” do ponto de vista político-social e da memória histórica: o colonialismo; Guerra Colonial; os “retornados”.
No dia-a-dia, poucos portugueses sabem o que é o tal “lusotropicalismo”. O que significa em termos práticos? De modo geral, os portugueses têm uma memória histórica de que o colonialismo lusitano não foi tão mal ou violento como o dos outros impérios europeus
Em janeiro de 1961 o governo fascista de António Salazar iniciou a tenebrosa Guerra Colonial. Ela tem uma dupla face. De um lado, centenas de milhares de mortes, na sua maioria militantes das lutas de Libertação Nacional e anticolonial. Por outro, muitos portugueses foram empurrados para três teatros de guerra, sem muitas chances de vencer. Ou seja, empurrados para morte ou condenados a voltarem com sequelas físicas e psicológicas.
No entendimento de grande parte dos historiadores, será a guerra o fator decisivo na derrubada do regime fascista pelas Forças Armadas – Os “Capitães de Abril”. Porém, nesse processo de pós-Revolução e descolonização vão emergir dos ex-combatentes da Guerra Colonial (1961-1974), que em certa medida foram postos de lado pelo novo regime político que se consolidou após a vitória contra-revolucionária de 25 de novembro de 1975. As condições de vida e a memória acerca deles é explorada pela direita reacionária, pois afirmam que o Estado “abandonou os verdadeiros heróis da pátria, que lutaram pelo Portugal ultramarino”, isto é, o Portugal colonialista.
O processo de descolonização forçado pela queda do regime fascista português, a brava luta dos povos colonizados pela Libertação Nacional e a independência política das ex-colónias criou uma outra figura: “os retornados”. Quem são esses? O perfil dos portugueses que estavam nas colônias era diverso ocupavam espaços de poder político ou econômico nas colônias. Visto que numa estrutura social racista essas pessoas tinham espaços de privilégio (classe dominante ou elite), mas com avançar da luta anticolonial e a vitória dos povos locais, os colonos tiveram que deixar tudo para atrás e voltaram “sem nada e de mãos vazias” para a metrópole, como ouve-se da boca de vários “retornados”.
Foram pouquíssimas as medidas a de Estado que se preocuparam com essas pessoas, a fim de lhes garantir uma “compensação” financeira. Esse grupo de retornados acredita que foi “lesado” e que o Estado português o deveria indenizar. Assim, esse sentimento foi alimentado durante toda uma vida, passando aos filhos, netos e afins. Para essas pessoas a Revolução dos Cravos significou empobrecimento e perda de status social dominante nas colônias. Ventura e o seu partido estimulam também mais essa fratura na sociedade como elemento mobilizador contra os resquícios e conquista da Revolução do 25 de abril.
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