I nvertendo a lógica, começo pela conclusão: o jornalismo (independente) nos dois jornais da Madeira é objectivamente impossível. Não se trata de uma opinião e, se quisermos deixar de lado tabus e preconceitos enraizados, não é muito difícil de demonstrar.
Em geral, o jornalismo verdadeiro e independente tem um único objectivo – a verdade, independente, como única forma de informar de forma isenta o leitor.
Na Madeira, o DN (Madeira) e o JM padecem de um problema de base que condiciona a sua total independência e que radica nos próprios estatutos.
Como ponto prévio, importa clarificar duas coisas:
1. A autonomia é uma conquista e um direito indiscutíveis das regiões autónomas sobre a qual há uma unanimidade quer nas regiões, quer na República, que é essencial ao desenvolvimento das regiões autónomas. A sua existência é assunto que nem se discute.
A manutenção de uma certa ideia (fantasiosa) de que é preciso defender constantemente a conquista da autonomia, como se vê bem na RAM, serve e tem servido apenas à satisfação de uma agenda e dos respectivos interesses partidários e ideológicos, não aos madeirenses ou à Madeira. E é a utilização abusiva dessa bandeira da autonomia como conquista exclusiva de determinados partidos (que não é) que está na origem da realidade da Madeira.
2. O jornalismo independente não tem bandeiras, tem princípios. Acima de todos, o da verdade “doa a quem doer” e seja ou não prejudicial a qualquer causa. Não será muito popular dizê-lo, tal é a força do hábito na região, mas o verdadeiro jornalismo não se pauta pela defesa do interesse dos seus leitores. Pauta-se pela verdade e essa é a única forma de defender o interesse dos seus leitores. Se o jornalismo tem uma agenda, seja ela qual for, e por muito meritória, não é verdadeiro jornalismo, é propaganda, é o que quisermos, será activismo (por mais meritório que seja) travestido de jornalismo. Não é informação.
Fixados estes dois pressupostos, vamos ao que interessa:
Estatuto Editorial do JM:
“(…) - JM defende intransigentemente a Autonomia Política – Administrativa da Região Autónoma da Madeira”
Estatuto Editorial do DN:
“(…) O DIÁRIO define-se como um orgão de comunicação social ao serviço de uma informação objectiva, independente e responsável, alicerçada na defesa dos interesses dos madeirenses e porto-santenses, da sua Autonomia, bem como do interesse Nacional em que aquela se integra”
Nada disto, nenhum deste tipo de considerações, tem paralelo em qualquer estatuto editorial do Público, do Expresso ou do Diário de Notícias. Nenhum deles tem no seu estatuto editorial a defesa do interesse dos portugueses ou a defesa da soberania nacional, ou qualquer referência parecida.
Não o tem porque para o jornalismo a defesa do interesse dos seus leitores, ou da soberania, ou da democracia, ou da autonomia – tudo isso – se atinge pela defesa de um jornalismo independente e isento que informe os leitores. É que a verdade não tem nenhuma mensagem nem bandeira – é apenas a verdade.
É que nem mesmo o Açoriano Oriental (o jornal em circulação mais antigo do país) tem qualquer ponto, no seu estatuto, com igual teor ou algo do mesmo do género (link).
Aqui chegados, identificado o problema, vamos ao fundo da questão: será que é possível conciliar aqueles estatutos com um jornalismo isento e independente?
A resposta é negativa e a história demonstra-o.
Já se sabe que a especificidade política da RAM nas últimas quatro décadas permitiu que um determinado partido se apoderasse do monopólio da bandeira da autonomia, que usa como uma conquista própria. No estado de coisas actual, lamentavelmente, os conceitos de Madeira, autonomia, Governo Regional e do partido acabam por se confundir muito facilmente.
Nesta embrulhado, o resultado é evidente: qualquer notícia desfavorável ao Governo Regional ou ao partido acaba por ser (ou poder ser) encarado, de certa forma, como uma notícia desfavorável ao interesse dos madeirenses e da autonomia. A absoluta confusão entre estes domínios levou-nos aqui, ao ponto a que a crítica a um partido e a um governo acaba por, na prática, ser tido como uma crítica à região ou à autonomia.
Pergunto se, existindo um caso de corrupção que envolva o governo regional, essa notícia é favorável à autonomia e aos madeirenses? Ou desfavorável?
Existindo factos que permitem concluir que tem havido má gestão dos dinheiros públicos pelo governo regional: essa notícia é favorável à autonomia e aos madeirenses? Ou desfavorável?
Concluindo-se que, existindo um determinado desacordo entre o Governo Regional e a Repúblico, a razão assiste claramente à República: essa notícia é favorável à autonomia e aos madeirenses? Ou desfavorável?
Caso um dia haja razões para crer que, devido ao mau uso dos dinheiros públicos, a Madeira está perto da bancarrota: essa notícia é favorável à autonomia e aos madeirenses? Ou desfavorável?
Eu respondo: não são favoráveis nem desfavoráveis, porque a verdade não tem nenhuma agenda nem agita nenhuma bandeira. Ela é simplesmente o que é. E é pela sua defesa que atingem todos os outros objectivos.
Da mesma forma, se o Público denunciar um escândalo de corrupção no governo que, por hipótese, tenha tal dimensão financeira que obrigue a UE a ajudar, nenhuma questão se coloca. Mas se o Público colocasse a defesa da soberania nacional e do interesse dos portugueses no seu estatuto editorial e o governo em causa pertencesse a um grupo no poder há 50 anos e que falsamente detivesse o “exclusivo” da defesa da soberania nacional, a questão complicava-se bastante. Dada a confusão dos domínios, noticiá-lo seria, certamente, “mau” para a causa...
Em suma, quando os órgãos que têm o dever de informar pretendem pautar o jornalismo pelas suas próprias bandeiras, mesmo que seja boa a intenção, o resultado é claro – tarde ou cedo começarão a atravessar todos os dias aquele cruzamento entre a defesa da verdade e a defesa de uma causa. E aí, o estatuto editorial serve como mapa para sabermos o caminho que terão de seguir...
Bandeiras, deixemo-las para o Avante, para o Povo Livre, para a Acção Socialista, para o jornal do Benfica, do Sporting o do Porto.
Haverá um dia, na Madeira, um jornal realmente independente cuja única bandeira seja a procura da verdade e a informação rigorosa e isenta? Não sei, mas gostava muito.
É que não haveria melhor serviço que se pudesse fazer à autonomia e aos madeirenses e portosantenses!
A propósito, há uns anos, Roberto Loja (que hoje escreve no DN Madeira) escreveu uma dissertação de mestrado sobre “Liberdade de Imprensa e de Expressão na Madeira”, do qual extraiu interessantes conclusões que vale a pena recordar a este propósito:
“A acção dos media pode exercer-se de várias formas: Pode promover o debate democrático e a participação cívica, pode relatar a realidade tal como esta é compreendida pelo jornalista, ou “pode contribuir para criar uma lenda à volta do homem e personificar o poder de tal modo que a instituição se apaga atrás do indivíduo. Tem sido um pouco este o papel da imprensa na Madeira, e para muitos, na Madeira, o Governo Regional é Alberto João Jardim, como para muitos continentais a Madeira é um feudo pessoal do seu presidente.
(...) O facto dos jornalistas madeirenses serem objecto de pressões, e de nalguns casos estas pressões serem bastante intensas, permite identificar a existência de indícios muito sérios de comportamentos pouco transparentes, e tendencialmente autoritários, o que aponta para que se viva na Madeira uma situação de semi-democracia, ou uma “democracia eleitoral”, no conceito delineado por Larry Diamond (...) A análise do inquérito aos jornalistas madeirenses realizado no âmbito deste trabalho demonstrou que muitos profissionais se têm sentido pressionados no exercício das suas funções e que, na maior parte dos casos, quando pressionados, estes jornalistas não podem contar com o apoio dos órgãos para que trabalham.
(...) O facto da Madeira ser um ambiente mais pequeno e das pessoas se conhecerem/reconhecerem quando passam umas pelas outras na rua presta-se também a outro tipo de situações, com responsáveis do Governo Regional – principalmente Secretários Regionais – a “agradecer” aos jornalistas os seus esforços “em prol do desenvolvimento da Madeira”, ou do “turismo madeirense”.
(…) Em termos muito concretos, e depois de uma análise cuidada tanto dos resultados do inquérito como os das entrevistas, a conclusão a tirar aponta para indícios da existência na Madeira de um regime muito especial, que não sendo uma ditadura, também não é uma democracia. Os jornalistas madeirenses apontam para violações claras da obrigação da não intervenção governamental na imprensa, mais uma vez entendida como sinónimo de media” (link). Nunca é demais dizê-lo, para que não restem dúvidas: A autonomia é uma conquista e um direito indiscutíveis das regiões autónomas sobre a qual há uma unanimidade quer nas regiões, quer na República, que é essencial ao desenvolvimento das regiões autónomas. A sua existência é assunto que nem se discute.
Acabo como comecei: o jornalismo (independente) nos dois jornais da Madeira é objectivamente impossível.
Enviado por Denúncia Anónima.
Quinta feira, 13 de Abril de 2023
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