Já não sei o que é ser Madeirense


Não queria escrever este texto, mas a minha namorada insiste em não deixar passar o que nos aconteceu.

C heguei a casa dos trinta há quase um ano e nesta altura da minha vida é raro conseguir estar com os meus amigos. A maioria deles emigrou. Os que não emigraram trabalham durante muitas horas e com horários imprevisíveis, ou então caíram no mundos das drogas. Recentemente, a gente encontrou-se numa tasca de poncha, das poucas que ainda serve poncha a preços decentes e com aguardente regional caseira, em vez de vodka barata, ou outra ardente importada. Enquanto a gente esperava pelas ponchas, porque o sítio estava cheio de turistas a pedir Aperol Spritz e meio litro de Franziskaner, veio a conversa da politica. Em quem vamos votar?

Nunca pensei nisso, politica nunca me aqueceu nem arrefeceu. Um dos meus amigos emigrantes no continente é familiar de um deputado e lá fez a sua conversa. Temos todos de votar PSD que é o partido da autonomia. Esse meu amigo, que tem os seus estudos, até falou de um tal dicionário da autonomia madeirense, um livro qualquer que o partido conseguiu publicar. Eu só tenho o ensino secundário (curso profissional informática) e fiquei logo confuso. O que é um dicionário da autonomia? Ele lá respondeu, mas entretanto a poncha chegou e a explicação ficou a meio. Aparentemente autonomia é o povo Madeirense ser livre e soberano. A conversa como era política logo descambou e os meus amigos continuaram a discutir que partido preferem.

Mas eu continuei confuso, o povo Madeirense é o que? Esse meu amigo emigrou assim que teve oportunidade, logo depois de terminar os estudos no continente. Não só emigrou como também casou lá no continente, numa quinta qualquer. A mulher dele é continental e ele as vezes já puxa da "veia do cu" com o sotaque cubano. Só vem a Madeira para as festas, normalmente para ver artistas estrangeiros e já nem se lembra de nenhum dos nossos amigos que, infelizmente, sucumbiram às drogas. 

Entretanto eu que estou na ilha desde que nasci e que sou pai de uma linda princesa de 7 meses mal consigo, juntamente com a minha namorada, ganhar dinheiro suficiente para alimentar a minha filha, quanto mais casar e ter casa própria. Como não tenho estudos, tenho que trabalhar em bares, área onde já acumulei alguma vasta experiência. No entanto, o salário nunca foi grande coisa e agora com a inflação, com os imigrantes que aceitam salários mais baixos, o salário de barmen já não dá para criar a família. Tentei durante uns meses o desemprego e os concursos, mas passava sempre alguém à minha frente. Cheguei a ser chamado para entrevistas que nunca aconteceram porque a primeira entrevistada ganhou logo. Consegui um trabalho de barmen, mas mais uma vez, é temporário porque o patrão já está a contratar imigrantes, como é agora comum na área.

Há uns anos tentei ser empreendedor. Todos os meus amigos diziam que tinha jeito para fotos, fiz até um site e cheguei a fotografar casamentos. Mas os casamentos acabaram, agora só os que têm contas famosas nas redes sociais é que fazem os poucos casamentos que ainda há na Madeira. Ando eu e anda a minha namorada de trabalho precário em trabalho precário, a tentar criar uma filha, não temos vida social porque trabalhamos muitas horas, mal pagas, (...). Para nós não há subsídios, não há ajudas, o que é ser Madeirense livre e soberano?

E a conversa prossegue mas...

A politica já estava a azedar, então passaram para o futebol. Falaram das contratações luxosas do Benfica e do Sporting, esse meu amigo estava todo contente que ia ver o Di Maria no Estádio da Luz. Ninguém falou do nosso Marítimo de infância, do qual tive de deixar de pagar as quotas porque todos os cêntimos são poucos. O futebol depois também azedou e aproveitaram para planear uma ida ao Cabo Girão para a despedida, até Agosto, mês de arraiais quando todos os emigrantes voltam para gozar a ilha, enquanto os Madeirenses livres e soberanos têm de trabalhar, como eu, num bar.

Neste domingo fomos todos ao Cabo Girão e fiquei ainda mais confuso com o que é a autonomia. É que eu estou na Madeira desde que nasci, estou a criar uma filha nesta ilha que amo, não sou considerado residente porque não estou registado numa aplicação? Porque não estou registado no SIMplifica não sou Madeirense? O que é esta merda? Eu e a minha namorada tivemos de pagar 4 euros para ver o Cabo Girão, a mulher desse meu amigo, familiar de um deputado, também teve de pagar, mas ela é "cubana", eu vivo cá. Fiquei ainda mais perturbado quando o nosso amigo casado com "cubana", vivendo há anos no continente e a puxar pela veia do cu, não teve de pagar porque tem conta no SIMplifica. Nenhum dos meus amigos emigrantes pagou, todos eles tinham registo. Mas afinal como é que é? Disse ao segurança que tenho sotaque e até contas na RAM para pagar com a minha morada, como é que não sou Madeirense? Fiquei louco. O segurança diz que é normal. Se é normal porque é que não mudam? Agora tem de ser uma aplicação a dizer se sou Madeirense ou não?

Já não sei o que é ser Madeirense! Não tenho trabalho em condições, não tenho amigos, não tenho casa e não tenho dinheiro que dure até ao fim do mês. O clube que apoio desde criança estava no fundo do poço e já não  consigo pagar as quotas. Já não posso beber uma poncha sem ter vodka ou o sitio estar de cheio de turistas. Tenho de ir de pé no autocarro porque os turistas têm tempo livre e conseguem sentar-se primeiro. Vou à serra fazer uma patuscada mas não tenho lugar para estacionar, ou há tendas por todo o lado. Tenho que trabalhar durante os arraiais porque não há outro trabalho, mas também é só artistas estrangeiros que não lembram a ninguém o tradicional. Já não posso levar as minhas princesas aos lugares mais bonitos da ilha, já não posso mostrar a MINHA ilha a minha filha de 7 meses porque não sou Madeirense se não estiver registado numa aplicação do Governo?

Onde está a autonomia Madeirense live e soberana?

Enviado por Denúncia Anónima
Segunda-feira, 17 de Julho de 2023
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