Criação do Clube Naval do Funchal: uma história de sal, suor e snobismo


É sempre interessante olhar para as origens das instituições com estatuto — essas que se vestem de tradição como quem põe gravata ao domingo. O Clube Naval do Funchal é um desses casos, à primeira vista, um espaço de convívio saudável junto ao mar, de promoção do desporto náutico e da vida activa. Mas se formos cavar (de preferência com luvas de vela e chapéu panamá), descobrimos que nasceu, na verdade, de uma motivação bem mais mundana, o medo de apanhar tuberculose.

Nos idos tempos da Madeira antiga, quando o arquipélago era mais pulmão doente do que destino turístico, a tuberculose ceifava vidas à esquerda e à direita — especialmente à esquerda, convenhamos. O povo, pobre e espremido em casas húmidas e sem arejamento, morria que nem tordos, e a doença era tão contagiosa que foram construir o Hospital dos Marmeleiros bem lá em cima, longe te de tudo e todos.

Perante este cenário, o que fez a elite madeirense? Fugiu para as serras? Mudou-se para casas ventiladas? Não. Decidiu criar um refúgio à beira-mar onde pudesse fingir que era saudável, rica e imune — e assim nasceu o Clube Naval do Funchal. Um espaço com ar do mar, sim, mas ainda mais importante, com barreiras invisíveis à entrada.

A ideia era clara, manter distância do povo, esse agregado incómodo de bactérias e sotaques. Um sítio onde se pudesse tomar sol em paz, e discutir negócios ou receitas de escabeche sem risco de cruzar com alguém que tivesse uma tosse duvidosa.

Mas fica a pergunta, e é uma que ecoa até hoje, quem é que decretou que aquele espaço pertence à elite e não ao povo todo da Madeira? Que lei divina, que cláusula fundacional, que despacho celestial decidiu que aquele pedaço de mar é apenas para os que sabem usar sapatos de vela e dizer “jantar” em vez de “comer”?

O mar é de todos. O sol, também. E os espaços públicos deviam sê-lo por definição, não por selecção. Mas o Clube Naval — mais que uma instituição — é um símbolo, de como se criou uma redoma em torno do privilégio, mascarada de “tradição”.

E no fim, essa é a ironia cruel, gastaram-se décadas a separar “os de dentro” dos “de fora”, a erguer muros invisíveis com sotaques e quotas, como se isso fosse garantir a eternidade. Quando, no fundo, estamos todos no mesmo barco — e um dia vamos todos ao fundo.

Hoje em dia andamos todos a correr de um vírus diferente, mascarados como bandidos em supermercado, e a lição continua por aprender: ricos, pobres, queques ou zés-ninguéns... vamos todos acabar do mesmo tamanho, num caixote de madeira (de preferência tratada, para os mais exigentes).

Clube Naval... criado por medo, mantido por vaidade, frequentado por quem ainda acha que um barco é um símbolo de status e não uma metáfora perfeita da vida, flutuar enquanto se pode, porque afundar... bem, afundar é para todos.

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