Jesus e os anjos


E stava Jesus, introspectivamente sentado, queixo na mão, olhar perdido no vazio, ou o vazio perdido no olhar – quem olhasse fugazmente, não podia ter a certeza –, quando sentiu que alguém se aproximava. É necessário esclarecer que “sentiu” é uma maneira de dizer, pois as incómodas presenças ainda vinham longe, mas, mesmo com os seus poderes mais do que dispersos devido aos últimos acontecimentos, Jesus já tinha pressentido que não ia ficar só durante muito mais tempo.

Olhou, e eram os anjos, ofegantes, afogueados, com ar miserável. Com aquele aspecto, não davam grande nome àquilo que eram; um deles até apresentava umas borbulhas no rosto macilento, mal barbeado...

* Andastes no vinho do bispo? - perguntou Jesus, ao ver as figurinhas em tal estado.

Os anjos olharam um para o outro, mas rapidamente se recompuseram e responderam:

* Não, não! Nem tal coisa nos passaria pela cabeça. Além disso, depois das palavras emitidas pelo vosso representante entre os homens, suspeitamos que já não deve restar nem vinho, nem uísque, nem licor... - e permitiram-se um desafinado casquinar, à laia de riso.

* Então, que vos traz por cá, com esse ar compungido e miserável?

* É aquela gaja, senhor... - começou um dos afogueados.

* Também com vocês? - interrompeu Jesus, admirado – Essa gaja, burra do car#%, também vos provocou? Não basta o que já me fez? - vociferou, enquanto distribuía uns litros de perdigotos à sua volta.

* Também, senhor. - confirmou um dos anjos, enquanto limpava a barba mal feita, que tentava esconder o acne. - Estamos nas ruas da amargura. Toda a gente nos goza.

* E o bardamerdas, também se meteu com vocês, o bardamerdas?

Os anjos entreolharam-se, surpreendidos.

* Também havia um desses? Não nos apercebemos, senhor.

* Sim, havia. Há sempre. Muitas vezes mais do que um, que põem em causa a minha palavra. Como se eu não fosse a voz de alguém ainda superior a mim. Já não há respeito. - rematou, com a voz desalentada.

* É verdade, senhor. Mas se havia um desses, vamos processá-lo também. Desta vez, vamos pedir 3 milhões...

* Não adianta. Isto está tudo feito para nos prejudicarem. Não seguem as  minhas orientações. Não ouvem a minha palavra. Até os hinos... Já avisei o bispo, mas até os hinos... não conseguem cantá-los sem desafinar.

* Mas nós não desafinámos, senhor. Quer dizer, só um pouco, mas ninguém notaria se não fosse aquela gaja. - retorquiram os anjos com ar ofendido.

* Deixem lá isso. Caguei nos hinos. E não façam essa cara, a palavra vem nos dicionários, por isso pode dizer-se à-vontade. Agora não me vão largar da mão durante uns tempos. Mas afinal, que raio estão vocês aqui a fazer?

* Vínhamos pedir o seu conselho, senhor. Acha que devemos pedir desculpa a alguém?

* Por causa daquela gaja? Da estúpida do... pois, já sabem. Acho que não. Uma vez já chega. Ainda vão pensar que têm alguma importância.

* Mas, senhor, a coisa não está a correr muito bem no tribunal...

* No tribunal? Mas estão a falar de quê?

* Daquele caso com aquela que se considera humorista. A Marques...

* Ah. Estavam a falar disso? Por momentos julguei que se estivessem a referir a outra coisa. Sei lá. Façam o que quiserem. De humoristas estou escaldado. Ainda não me esqueci daquela treta da divina comédia...

E os anjos, ainda rosados, saíram de cena, deixando Jesus embrenhado no pensamento de que talvez fosse melhor fazer uma pausa no Turismo e dedicar-se à pesca...

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