C hegou o Natal. Dizem que é tempo de luz, mas aqui só há néon avariado e risos falsos. O calendário insiste na festa; a realidade responde com silêncio, dívida e desgaste. Este texto não pede piedade. Exige lucidez. É um protesto anónimo contra um sistema social que normaliza a precariedade e chama “tradição” à violência quotidiana.
Vivo cercado por relações tóxicas que prosperam no boato, na inveja e no controlo emocional. Pessoas que passam o ano a desejar a queda alheia e, quando chega Dezembro, vestem o disfarce da cordialidade. É a hipocrisia sazonal: abraços que apertam o pescoço, sorrisos que cobram renda. A família, que deveria ser rede, tornou-se labirinto; os amigos evaporaram-se com o tempo, como promessas eleitorais após a contagem dos votos.
Quando há dinheiro, aparecem os interessados. Quando falta, sobra o julgamento. Sou demasiado novo para a reforma, demasiado velho para o mercado que se diz moderno e inclusivo. Não tenho poupanças, nem casa própria, nem margem de manobra. Tenho, isso sim, a obrigação de coabitar com quem transforma a dependência em chantagem psicológica. A pobreza não é só falta de meios; é excesso de humilhação.
Este Natal repete o padrão: ruído sem paz, ritual sem sentido, fadiga sem saída. A fuga seria racional, mas custa dinheiro. E a política pública, desenhada para relatórios e fotografias, falha no essencial: proteger quem cai entre estatísticas. A democracia enfraquece quando a vida real é empurrada para fora do discurso. A economia falha quando o trabalho deixa de ser ponte e passa a ser muralha. A governação perde legitimidade quando tolera a captura do bem comum por interesses opacos, enquanto pede paciência aos que já não têm.
Defino justiça como equilíbrio verificável; dignidade como condição mínima; Natal como descanso possível. Ancorado nesses princípios simples, o argumento é claro: sem estabilidade material não há liberdade; sem empatia institucional não há coesão; sem responsabilização não há futuro. Testem esta tese onde quiserem — nos bairros invisíveis, nos lares saturados, nas filas silenciosas. Ela resiste.
Este texto é uma gargalhada amarga num mundo que vende esperança a prestações. Não pede caridade. Reclama regras justas, políticas que funcionem e respeito por quem vive no limite. O Natal não precisa de milagres. Precisa de verdade.
