É uma vergonha nacional o que hoje se vende como “poncha tradicional” na Madeira. Percorra-se a ilha de ponta a ponta e repete-se o mesmo padrão: tabernas, bares, tascas e restaurantes servem uma fraude com nome tradicional. Vendem vodka e tequila no lugar da água-ardente regional. Usam sumos de pacote e concentrados em vez de laranja ou limão frescos. Trocam o mel de cana ou de abelha por açúcar barato. Misturam tudo na blender, apagam o gesto ancestral, e chamam a isso tradição.
Definamos os termos, para não haver fuga semântica: poncha tradicional da Madeira é água-ardente regional, mel e sumo fresco de citrinos, mexidos com o pau, à vista do cliente. Tudo o resto é imitação. E imitação vendida como autêntica é engano. Engano é roubo. Roubo cultural, económico e moral.
O problema não é folclórico. É político. Quando um produto identitário é falsificado em massa, o dano vai além do copo. Prejudica produtores locais, destrói cadeias económicas regionais, deseduca turistas e normaliza a mentira como prática comercial. É o mercado sem regras a engolir a cultura, com a complacência silenciosa de quem devia fiscalizar.
Onde está a Autoridade Regional para as Atividades Económicas? Onde está a inspeção, a multa, a apreensão? É legítimo perguntar se a ausência é incapacidade, desleixo ou proximidade excessiva aos interesses instalados do setor turístico. Num regime democrático, a autoridade existe para proteger o consumidor e o património coletivo, não para fechar os olhos ao “é assim que se faz”.
Os preços agravam o insulto: 3,50€ ou 4€ por um copo de burla aromatizada. Paga-se poncha, recebe-se outra coisa. Isto viola a confiança, mina a estabilidade e mata a esperança de autenticidade. Sem confiança não há mercado justo. Sem fiscalização não há lei. Sem verdade não há tradição.
Os consumidores têm também responsabilidade. Exijam transparência. Olhem para as cascas no lixo. Perguntem pela água-ardente e pelo mel. Peçam a poncha feita na hora, à vossa frente. Recusem jarros pré-feitos. Recusem a farsa.
Preservar a poncha é preservar dignidade. A tradição não é decoração para turista. É compromisso com a verdade. E a verdade, aqui, é simples: ou é poncha tradicional, ou não é. Tudo o resto é enganar — e isso não pode continuar.
