Urbanismo de obediência: a ditadura começa no asfalto


Quando a marginal de São Vicente se rende à cor do poder

É mais do que tinta. É mais do que uma obra.

O pavimento laranja da nova marginal de São Vicente não é uma escolha estética nem um deslize criativo, é uma declaração de poder, uma ordem silenciosa que saiu de gabinetes bem protegidos para marcar o território com a cor do partido que domina a Madeira há quase meio século.

Ali, naquele asfalto saturado, não está só uma estrada: está o início de um plano simbólico e ideológico, cuidadosamente executado para transformar espaços públicos em palanques permanentes, sem rosto, mas com cor. A cor laranja, marca do PSD Madeira, marca do poder hegemónico, marca da obediência.

Não é exagero. A história oferece exemplos precisos:

  • Na URSS, estátuas de Stalin substituíram árvores;
  • Na Coreia do Norte, avenidas desertas servem como corredores de veneração aos Kims;
  • Saddam Hussein erguia o próprio braço em bronze, enquanto batizava avenidas com a sua glória.

Agora, em São Vicente, temos um asfalto pintado da cor do partido dominante, não por engano ou estética, mas como memória asfaltada do domínio, da submissão e da absorção ideológica. Diz-se, em surdina, que é “uma homenagem aos 12 anos do fim do movimento Unidos pelo Povo” — um grupo independente, engolido e esvaziado com o tempo, e cuja figura tutelar, José António Garcês, permanece símbolo de poder, corrupção e silêncio conveniente.

Mas esta obra não termina ali.

Segundo vozes de dentro, e olhos atentos no terreno, outros projetos semelhantes estão em curso ou previstos:

  • Trechos urbanos na Calheta e em Câmara de Lobos poderão ser “melhorados” com o mesmo tom partidário;
  • Há pinturas de equipamentos e mobiliário urbano em curso, discretamente padronizadas;
  • Em algumas freguesias da costa sul, obras com blocos laranja e simbologia gráfica “neutra” começam a aparecer — mas “neutro”, ali, já sabemos o que quer dizer.

É o início de uma paisagem ideológica. Não é preciso colocar o rosto do presidente. Basta pintar o chão.

Basta que o povo caminhe sobre uma cor, todos os dias, até que deixe de ver.

Estamos perante um urbanismo de obediência, silencioso e constante, que não precisa de polícia política, porque já tem a cor como vigilância. Já não é propaganda nas paredes, é propaganda debaixo dos nossos pés. O que se vê em São Vicente não é uma exceção rural: é o protótipo.

A cor laranja, que já domina os boletins, os outdoors, os cartazes de campanha, agora avança como tinta institucionalizada do espaço público. É a mesma lógica do autoritarismo disfarçado de obra, do culto à continuidade, da arquitetura como sinal partidário.

E assim, com uma camada de tinta sobre o asfalto, inicia-se o ciclo do novo velho autoritarismo madeirense.

Sem debates. Sem consulta. Sem vergonha.

A democracia começa a ceder quando o chão já não é neutro.

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