C onheço muitas pessoas. Tenho contactos, mensagens, números guardados. E muitas pessoas dizem conhecer-me. O paradoxo começa aqui. Num mundo cheio de redes, falta a rede que segura quando o chão falha. Esta não é uma história pessoal isolada. É um retrato social repetido, quase banal, mas nunca inocente.
Por “abandono social” entenda-se algo simples: quando alguém está disponível para ajudar, mas quando precisa, ninguém aparece. Não é azar. É padrão. Em sociedades que se dizem modernas, a ajuda virou discurso, não prática. A empatia existe em posts, não em contratos. A solidariedade é emocional, não material.
Partamos de um facto difícil de negar: o trabalho precário cresce, o trabalho independente rende pouco, e a estabilidade é luxo. Muitos sabem disto. Sabem quem vive com pais reformados. Sabem quem conta moedas. Mesmo assim, fecham portas. Não por maldade direta, mas por conforto. É mais fácil ignorar do que agir.
A lógica é clara. Se o sistema recompensa a indiferença, a indiferença torna-se regra. O mercado promete mérito, mas entrega silêncio. A política fala de crescimento, mas esquece pessoas. A democracia existe no papel, mas falha na vida concreta quando não garante condições mínimas de dignidade.
Há coerência nisto? Infelizmente, há. Um modelo económico que normaliza a instabilidade cria cidadãos cansados, isolados e descartáveis. Não é contradição: é consequência. Quando tudo é competição, pedir ajuda parece fraqueza. Quando tudo é retórica, o sofrimento torna-se ruído.
Onde estão as provas? Estão nos dados sobre pobreza laboral, nos recibos verdes eternos, nas crises que se repetem e nunca são resolvidas. Sempre que a economia abana, os mesmos caem. E depois perguntamos por que cresce o cinismo, a raiva, o cansaço.
Este argumento pode ser testado. Bastaria garantir trabalho digno, rendimentos estáveis e políticas públicas eficazes. Se o abandono diminuísse, a tese cairia. Mas não cai. Resiste. Porque o problema não é invisível. É estrutural.
No fim, tudo assenta num princípio simples: uma sociedade mede-se pela forma como trata quem está fraco, não quem já está seguro. Quando alguém se pergunta se fará falta ao morrer, o fracasso não é individual. É colectivo. E enquanto isto for normal, não vivemos numa comunidade. Vivemos numa multidão indiferente, bem vestida e muito ocupada a não ver.
