O provérbio marroquino “As árvores votaram no machado, porque achavam que tinham algo em comum com ele. Era o cabo de madeira…” é uma poderosa metáfora sobre ilusão, manipulação e autossabotagem. À primeira vista, as árvores acreditaram que o machado era “um dos seus”, por partilhar com elas a mesma essência, a Madeira. No entanto, foi precisamente essa semelhança superficial que levou à sua destruição. O machado, apesar do cabo de madeira, tinha uma lâmina de ferro cuja única função era cortar, separar, ferir.
Esta metáfora encaixa de forma inquietante na atual realidade política de Portugal, com o crescimento do partido Chega. Muitos eleitores, sentindo-se esquecidos, revoltados ou desencantados com os partidos tradicionais, começam a identificar-se com uma retórica populista que parece dar-lhes voz. Acreditam que “o cabo é de madeira”, ou seja, que o partido fala como eles, se parece com eles, entende as suas dores. Mas ignoram, por vezes, que a “lâmina” desse discurso é afiada, divide em vez de unir, promove o ódio em vez da solidariedade, e coloca em risco as próprias fundações da democracia e da coesão social.
Tal como as árvores, que deram poder ao seu próprio algoz, os cidadãos correm o risco de entregar a voz e o voto a forças que, no fundo, não pretendem construir, mas sim destruir as bases do Estado de Direito, os direitos das minorias e o respeito pela diversidade. É fácil ser seduzido por soluções simples e discursos inflamados, sobretudo em tempos de crise ou desilusão. Mas o perigo está em confundir afinidade superficial com verdadeira representação.
O crescimento do Chega não deve ser visto apenas como um fenómeno político, mas também como um sinal de alerta: há uma parte significativa da população que se sente desamparada. Mas a resposta a esse desamparo não deve ser o voto no machado, ainda que tenha cabo de madeira, mas sim a procura de soluções que reformem com justiça, e não que reformem com raiva.
Mas o perigo está em confundir afinidade superficial com verdadeira representação.
A situação da Madeira mostra como a ilusão de familiaridade e continuidade pode ser perigosa, mesmo quando o poder parece estável. A Madeira é um excelente exemplo de como a permanência prolongada de um partido no poder, como o PSD desde 1976, pode criar uma sensação de identidade e proteção — tal como o cabo de madeira do machado, mas que, na prática, pode também contribuir para estruturas de clientelismo, falta de alternância democrática e resistência à mudança.
Tal como no provérbio, a Madeira mostra como algo que parece próximo, conhecido e seguro, “da nossa madeira”, pode, com o tempo, funcionar como um instrumento de corte, impedindo renovação, criando dependências políticas e obscurecendo os sinais de desgaste democrático.
Seja na ascensão de movimentos extremistas como o Chega a nível nacional, seja na estagnação de regimes locais com décadas no poder, o aviso do provérbio marroquino é claro: nem tudo o que parece familiar está do nosso lado. Às vezes, o perigo tem a nossa cara, fala a nossa língua, e até tem o nosso cheiro, mas carrega consigo uma lâmina afiada.
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