Uma traição à memória e à dignidade.
H á algo de profundamente revoltante – quase obsceno – em presenciar portugueses emigrantes a aplaudir a escalada do ódio em Portugal. É uma ironia cruel, uma distorção moral que atinge as raias do inacreditável: gente que encontrou refúgio, trabalho, direitos e dignidade em terras estrangeiras, agora, de peito cheio e retórica inflamada, advoga um projeto político para o seu país de origem que negaria a outros as mesmas portas que um dia se lhes abriram. Isto não é apenas incoerência; é uma traição à própria história, uma cuspidela no prato onde comeram.
O espelho partido da memória: quem esqueceu de onde veio? Que demência coletiva se apoderou de quem, tendo vivido na pele a experiência da migração, se esquece do caminho que percorreu? Os vossos avós, os vossos pais, atravessaram fronteiras, muitas vezes com o estigma de "os outros". Foram alvo de desconfiança, racismo, exploração, trabalharam nas sombras, sem voz, por vezes sem documentos. E agora, com o estatuto e a segurança conquistados, viram-se para Portugal para defender ideologias que classificam os imigrantes como "pragas", que ecoam discursos de "invasão" e "limpeza cultural". A vergonha parece ter-se evaporado, a memória, desvanecido.
É de uma cegueira gritante. Como é possível defender para Portugal aquilo que os países que vos acolheram rejeitam veementemente? Se França, Suíça, Luxemburgo, Alemanha, Inglaterra tivessem adotado o mesmo modelo de exclusão que agora advogam para Portugal, estariam ainda nos países que vos deram casa, educação para os vossos filhos, assistência médica? A resposta, dura e direta, é um não retumbante. Já teriam sido deportados, colocados num avião com um bilhete só de ida, devolvidos à incerteza.
A proliferação da ignorância: redes sociais e a "Verdade" Populista. É nojento ver a propagação de discursos inflamados nas redes sociais, o partilhar acrítico de vídeos populistas como se fossem revelações divinas, acompanhados do brado "finalmente alguém diz a verdade". Mas que "verdade" é essa? A verdade de que o medo é mais confortável do que a empatia? A verdade de que é mais fácil esquecer o que fomos do que enfrentar quem somos? Isto é uma miséria moral, um retrocesso humano que corrói os alicerces da solidariedade.
O emigrante que renega as suas raízes, que se esquece do percurso árduo que o trouxe à sua condição atual, não é um símbolo de sucesso; é um espelho do cinismo. Ao abraçar e propagar estas ideologias xenófobas, não estão apenas a atacar aqueles que hoje procuram refúgio e oportunidade – que tentam trilhar o mesmo caminho que outrora vos coube. Estão, de facto, a atacar os vossos próprios fantasmas, a cuspir no vosso passado, a negar a outros o direito a uma vida digna, a uma oportunidade que a vós foi concedida.
Covardia à distância: a falsa bandeira do patriotismo. Não são patriotas. Não são "realistas". São, isso sim, cúmplices daquilo que um dia também vos magoou. Portugal tem memória. E vós, enquanto emigrantes que beneficiaram da abertura de outras nações, devíeis possuí-la em dobro. Aplaudir o ódio, da distância confortável da segurança que outros vos proporcionaram, é a forma mais abjeta de covardia.
Quem viveu na pele o que é ser "de fora" e, ainda assim, reproduz o discurso do carrasco, não merece palmas. Merece ser confrontado. Merece ser olhado de frente com a pergunta simples e implacável: Se hoje fosses tu a bater à porta... Portugal abriria? Ou fecharia, irremediavelmente, por tua causa? Pensa bem. E que a resposta, se tiveres coragem de a formular, te confronte com a tua própria hipocrisia.
0 Comentários
Agradecemos a sua participação. Volte sempre.