Carros na praia? Só faltava essa…

 

A cultura de destruir o silêncio e o sossego para vender bebida.

A Praia Formosa, recanto sagrado da alma madeirense onde se vai para desligar do mundo, ouvir o mar, sentir o vento e tentar esquecer os buracos nas estradas e as filas para chegar a casa, foi agora invadida por uma ideia absolutamente revolucionária: uma exposição automóvel, organizada pela irreverente Associação de Engenharia, Design e Cultura Automóvel da Madeira (AEDCAM), liderada pela incansável Marta Pereira, a presidente que decidiu que carros e calhaus combinam perfeitamente.

Porque nada diz "zen", "verão" ou "qualidade de vida" como uma fila de veículos a brilhar ao sol, estacionados onde deviam estar toalhas, pranchas e guarda-sóis.

É preciso coragem (ou despudor) para olhar para a Praia Formosa, um dos últimos espaços públicos da Madeira onde ainda se pode ser gente sem pagar bilhete ou consumir algo e decidir:

- "Sabe o que falta aqui? Uma exposição de automóveis."

Sim, claro, porque os madeirenses só veem carros todos os dias nas estradas, nos passeios, nos arruamentos mal planeados e nos parques de estacionamento transformados em armadilhas urbanísticas. Agora querem vê-los também a ocupar a areia preta onde os miúdos constroem castelos, os idosos caminham ao fim da tarde e os casais tentam recuperar alguma sanidade mental ao pôr do sol.

A Praia Formosa não é só uma praia. É um refúgio emocional. É o ponto de encontro das gerações, o escape do stress laboral, o sítio onde se vai respirar, não cheirar borracha e combustível.

E como se não bastasse esta brilhante ideia, ainda temos o fenómeno paralelo das "associações de ocasião" que brotam como cogumelos fora de época. Criar uma associação tornou-se o novo desporto regional. Quer justificar subsídios, apoios, verbas e convívios com comes e bebes? Simples: crie uma associação com um nome vagamente artístico, técnico ou cultural, inscreva meia dúzia de sócios e abra o NIF. Eis algumas propostas para breve, no espírito do absurdo que nos rodeia:

  • Associação da Sombra do Dragoeiro – dedicada a proteger as sombras projetadas por árvores autóctones ameaçadas pelo urbanismo criativo.
  • Associação da Lapela Esquecida – para recuperar a autoestima das camisas mal passadas nos eventos institucionais.
  • Associação do Grito Contido no Túnel do Curral das Freiras – arte sonora contemporânea para ouvidos resilientes.
  • Associação da Bexiga Pública – que luta pelo direito a casas de banho públicas em eventos onde se bebe, mas não se pensa.
  • Associação das Pegadas na Areia que Ninguém Viu – preservação poética de memórias não documentadas.

Brincadeiras à parte, o que está em causa aqui é respeito por um espaço que pertence a todos nós, e não a interesses privados disfarçados de “projetos culturais” sobre rodas.

A Praia Formosa merece ser defendida. Não transformada numa montra de latas e eixos polidos, mas celebrada como o que sempre foi, um lugar onde o madeirense se encontra consigo próprio, com o mar e com a tranquilidade que tanto lhe falta no resto da ilha.

Portanto, deixem os carros onde pertencem, nas estradas (já agora, arranjem-nas), e devolvam a praia a quem ela serve de verdade, o povo.

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