F oi colocado no Facebook uma publicação sobre uma intervenção com várias escavadoras na Praia do Portinho em Santa Cruz. Como estamos intoxicados de obras, todos pensam em obras com tantas máquinas, ninguém pensa em limpezas. O timing é "politicamente excelente" para uma confusão. Vamos a ela, estamos habituados a argoladas do tipo parques pagos no Garajau.
Os deveres de salvaguarda da orla costeira não extinguem o direito dos municípios ao ordenamento do território. O licenciamento do projecto é sempre municipal. O que temos na Praia do Portinho?
- Câmara de Santa Cruz quer alterar o PDM “para viabilizar projeto do Portinho” e a COSMOS ameaça com “Ação Popular” (link)
- Supensão do PDM de Santa Cruz na zona do Portinho com força de lei (link)
- Filipe Sousa garante requalificação da Estrada do Portinho. "O hotel do Portinho já conheceu vários projectos e beneficiou da suspensão, por duas vezes, do PDM" (link)
- Projeto hoteleiro encalhado no Portinho (link)
- Bloco propõe acesso pedonal sustentável à Praia do Portinho (link)
A orla costeira é um dos territórios mais frágeis e valiosos da Região, o acesso é limitado pela orografia e cada canto é disputado. Os lesados são sempre a população com a privatização de praias, quer se queira, quer não, sob qualquer formato inicial, manhoso para progredir. Nela convergem riscos ambientais, pressões urbanísticas, valores naturais, atividades económicas e património cultural. Por isso, o Estado central institui instrumentos de salvaguarda específicos, como os Programas da Orla Costeira (POC), que fixam regras de proteção e uso sustentável.
Muitas vezes coloca-se a questão, ao estabelecer estes deveres de salvaguarda, o Estado não estará a esvaziar a autonomia dos municípios em matéria de ordenamento do território? Penso que não. Os deveres de proteção da orla costeira condicionam, mas não extinguem, o direito municipal ao ordenamento. O licenciamento de projetos deve permanecer competência municipal. Basta ver a celeuma da Praia Formosa, um problema idêntico ao Portinho.
A Constituição da República Portuguesa consagra a descentralização e reconhece competências próprias aos municípios, incluindo a gestão territorial.
A Lei de Bases da Política Pública de Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo (Lei n.º 31/2014) estrutura os instrumentos de gestão territorial em quatro níveis: nacional, regional, intermunicipal e municipal.
A orla costeira é regulada através de instrumentos especiais, os POC (antigos POOC), que fixam faixas de proteção, usos permitidos e critérios de compatibilidade. Estes planos têm força vinculativa, devendo ser respeitados pelos municípios na elaboração e execução dos seus Planos Diretores Municipais (PDM), Planos de Urbanização ou Planos de Pormenor.
Ou seja: existe hierarquia normativa, mas não substituição de competências.
Os municípios são a entidade mais próxima do território e da população. É a nível local que se conhece a realidade do solo, as dinâmicas urbanas e os impactos concretos de qualquer projeto. O licenciamento municipal deve garantir simultaneamente:
- conformidade com os planos municipais de ordenamento;
- respeito integral pelas condicionantes impostas pelos programas da orla costeira;
- articulação com pareceres e contributos de entidades setoriais, quando exigido.
A suspensão de PDMs é a legalização do que a Lei tenta salvaguardar. Assim, a decisão municipal não é arbitrária, está juridicamente vinculada e tecnicamente condicionada. Mas é no município que se avalia a adequação concreta do projeto, impondo adaptações ou recusando pedidos quando violam os regimes de salvaguarda.
A autonomia municipal em matéria de ordenamento decorre diretamente da Constituição. Os deveres de proteção costeira limitam, mas não eliminam, a competência municipal. A decisão local é mais célere e ajustada à realidade concreta, evitando burocracias excessivas. Os instrumentos de salvaguarda já estabelecem limites obrigatórios; os municípios apenas podem licenciar dentro desses limites. A orla costeira exige coordenação entre níveis de poder, não centralização total. Tudo depende da boa fé dos governantes ...
Alguns argumentam que o licenciamento municipal pode ser permeável a pressões locais ou incoerente face a uma visão nacional da costa. É um risco real, mas que não justifica retirar competência ao município. A resposta deve passar por:
- fiscalização e supervisão por parte das entidades centrais;
- obrigatoriedade de pareceres técnicos quando a lei o exigir;
- transparência e participação pública nos processos de decisão.
Assim assegura-se o equilíbrio entre a salvaguarda dos valores costeiros e o respeito pela autonomia local.
A gestão da orla costeira deve assentar em dois pilares complementares:
- Deveres de salvaguarda centrais, que fixam limites normativos claros e uniformes para todo o território nacional;
- Competência municipal de licenciamento, que garante a adequação da decisão ao contexto local e respeita a autonomia constitucional das autarquias.
Proteger a costa não significa centralizar. Significa cooperar. O futuro da orla costeira depende tanto de regras nacionais firmes quanto da capacidade dos municípios em aplicá-las com conhecimento de causa e sentido de responsabilidade.
Não deve ser inocente este caso em campanha das Autárquicas. A Presidente da CMSC, também candidata que esclareça.