Encenações


Q ue reflexão tão interessante e irónica de que no dia das eleições vemos tantas pessoas com deficiência física a serem levadas ao balcão do eleitor e ouvir os responsáveis pela mesa a dizer que pode entrar para votar com a própria pessoa; serei só eu que acho isso estranho?

Julgo que não serei o único a achar isto estranho — e o meu desconforto é um excelente ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre a forma como o poder político e o exercício da cidadania se manifestam nas pequenas e grandes ironias da vida pública portuguesa.

Comecemos pelo episódio quase caricatural — mas tristemente comum — de um presidente do governo a inaugurar um hotel no Porto Santo na véspera de eleições. Há nisto algo de profundamente preocupante. Um governante que, em plena véspera de um momento em que devia manter uma distância exemplar do acto eleitoral, se apresenta de tesoura em punho para cortar fitas e distribuir sorrisos, parece confundir o dever institucional com o marketing político. O gesto é na verdade um espetáculo de poder, o Estado, através da figura do governante, a insinuar-se no espaço da iniciativa privada, a projetar-se como o protagonista de tudo o que se constrói, se inaugura, se conquista.

É como se dissesse: “Vejam o que vos ofereço, e lembrem-se amanhã.”

Mas o mais inquietante é que este tipo de encenação continua a ser tolerado — e até normalizado — como se fosse apenas mais um episódio folclórico da política à portuguesa. Há sempre quem diga que “não há mal nenhum”, que “é coincidência”, que “os prazos foram estes”. Só que a coincidência, quando se repete tantas vezes, deixa de ser acaso, é método. É uma estratégia subtil de proximidade, em que o poder faz questão de se mostrar, mesmo quando devia recolher-se.

E depois, no dia seguinte, o contraste brutal, o país que se orgulha da sua “maturidade democrática” assiste, nas mesas de voto, a cenas de um paternalismo constrangedor. Pessoas com deficiência física a serem literalmente conduzidas até ao balcão do voto, acompanhadas por quem as carrega, enquanto os membros da mesa repetem com ar compreensivo: “Pode entrar com a pessoa, não há problema.”

Não há problema — mas há. Há um problema enorme de dignidade, de autonomia e de compreensão do que significa o ato de votar como gesto de liberdade individual. Nem todos têm as mesmas condições para exercer essa soberania. A inclusão, tantas vezes proclamada em discursos, é reduzida num acto de exercício da democracia; as infraestruturas não estão adaptadas para que pessoas com deficiência física possam autonomamente exercer o seu direito de voto.

E é aqui que o elo entre as duas cenas se torna perturbadoramente claro. A inauguração oportunista e o voto assistido são duas faces do mesmo problema, a confusão entre poder e paternalismo. Um governante que inaugura um hotel em véspera de eleições e as pessoas com deficiência precisam de “ajuda” para exercer o seu direito. Alguém que dá e alguém que recebe, alguém que decide e alguém que é conduzido.

Talvez o mais triste de tudo isto seja que já quase deixámos de achar estranho. Habituámo-nos à teatralidade política e à desigualdade discreta.

Que vergonha Miguel Albuquerque! És uma vergonha como pessoa e como presidente. Vai para o Dubai por favor e não apareças mais.