Cidade não é moral privada


H á um fenómeno curioso no debate público madeirense: a capacidade prodigiosa de algumas pessoas confundirem o seu desconforto pessoal com lei natural, regra universal e “civismo”. Sempre que aparece alguém a falar de nudez, nudismo, ou simples liberdade corporal, surge logo um pequeno exército de guardiões auto-proclamados da moral urbana, dispostos a transformar opinião pessoal em dogma cívico. O argumento é sempre o mesmo: “a cidade não é praia de nudismo”, “ninguém entra nu em lado nenhum”, “respeitem a cultura daqui”. Mas quando se raspa a superfície, descobre-se a verdade: não é civismo, é alergia à diferença.

A invocação da “cultura local” como arma de controlo comportamental é um truque velho e gasto. Cultura não é um cofre fechado onde se guarda a tradição à força; é uma realidade plural, mutável, que pertence a todos — não apenas aos mais sensíveis, aos mais barulhentos ou aos que confundem moral pessoal com verdade objetiva. Quem invoca cultura para limitar liberdade alheia não está a defendê-la: está a usá-la como escudo para justificar intolerância.

Depois há a ideia delirante de que nudez é automaticamente incivil. Incivil para quem? Com base em quê? Que dano concreto produz? A resposta, invariavelmente, é nenhuma. O único “dano” é o incómodo emocional de quem não suporta ver outros a viver fora do molde apertado que escolheu para si. E transformar esse incómodo em regra pública é o oposto de civismo: é imposição moral.

Fala-se muito de “respeito”, mas é sempre respeito numa só direção: para os costumes, para as sensibilidades, para os tabus de quem acusa. Nunca para a liberdade, a autodeterminação ou a diversidade. É o velho truque autoritário embrulhado em linguagem de boas maneiras. Querem respeito? Comecem por não exigir que os outros vivam segundo o vosso catálogo pessoal de pudores.

A cidade é de todos. É espaço público, não sala privada de nenhum moralista ocasional. O civismo que interessa não é o do dedo em riste; é o que permite coexistência, diferença, pluralidade. Quem quer uma cidade higienizada de comportamentos que não gosta devia assumir o que realmente defende: não civismo, mas controlo social mascarado de “cultura”.

É simples: se a liberdade dos outros não te prejudica, não tens autoridade para a limitar. Se te incomoda, olha para o lado. O espaço público não existe para proteger fragilidades pessoais. Existe para garantir que ninguém manda no corpo de ninguém — especialmente aqueles que juram que o fazem “por civismo”.