Aconteceu comigo: Instituto do Emprego Precário da Madeira


O Instituto de Emprego da Madeira (IEM, IP-RAM) foi criado com o propósito de promover a empregabilidade, a formação e a integração profissional na Região Autónoma da Madeira. Contudo, a sua atuação tem revelado contradições profundas entre a retórica da inclusão laboral e a realidade da precarização. Em vez de funcionar como instrumento de emancipação social, o Instituto parece consolidar um modelo de gestão administrativa do desemprego, onde o objetivo principal é reduzir números estatísticos, ainda que à custa da dignidade profissional dos trabalhadores.

Um exemplo paradigmático é o caso de um chef de cozinha que, após um período prolongado de desemprego, é obrigado a aceitar um posto como copeiro, sob a justificação de que tal trabalho constitui um “emprego conveniente”. Esta situação, longe de ser excecional, ilustra a forma como a legislação e as práticas institucionais podem, em nome da eficácia administrativa, subverter o sentido social do trabalho.

- O conceito de “Emprego Conveniente” e a sua aplicação

De acordo com o Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de novembro, e a Portaria n.º 8-B/2007, o conceito de “emprego conveniente” define o tipo de trabalho que o beneficiário do subsídio de desemprego é obrigado a aceitar para manter o direito à prestação. Este conceito tem em conta critérios como:

A adequação entre as qualificações do trabalhador e as exigências do posto;

A remuneração mínima aceitável (em regra, 75% da remuneração anterior nos primeiros seis meses de desemprego);

A distância e o tempo de deslocação;

As condições de trabalho e a duração do contrato.

Contudo, a própria lei admite que, com o prolongamento da situação de desemprego, as exigências relativas à qualificação e remuneração se tornam mais flexíveis (artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 220/2006). É precisamente neste ponto que se abre espaço para situações abusivas, em que um trabalhador qualificado pode ser coagido a aceitar funções muito abaixo das suas competências.

Assim, quando o Instituto de Emprego da Madeira considera que o trabalho de copeiro é “conveniente” para um chef de cozinha, está a aplicar a norma de forma legal, mas socialmente injusta, esvaziando o conceito de “emprego digno” e substituindo-o por uma lógica puramente administrativa.

- Desvalorização profissional e precariedade institucional

Esta prática tem implicações sérias: o trabalhador, para manter o direito ao subsídio, vê-se forçado a aceitar uma descida de categoria profissional, perdendo estatuto, rendimentos e oportunidades de progressão. A política pública, ao invés de promover a requalificação e a mobilidade ascendente, produz mobilidade descendente, desvalorizando a formação e a experiência acumuladas.

Paralelamente, o próprio Instituto de Emprego da Madeira é frequentemente apontado como exemplo de precariedade laboral interna. Vários relatórios e notícias regionais (ver, por exemplo, Diário de Notícias da Madeira, 2023) referem a existência de contratos a termo sucessivos, técnicos temporários e estagiários sem perspetiva de integração nos quadros. A instituição que deveria combater a instabilidade laboral é, ironicamente, um espaço onde a instabilidade é regra.

Esta contradição reflete um problema estrutural do modelo de emprego público regional: em vez de oferecer trabalho estável e qualificado, o IEM recorre à rotatividade funcional e à gestão por projetos temporários, frequentemente dependentes de fundos comunitários.

- Os programas de emprego e a ilusão da inserção

Os programas de emprego e estágios profissionais geridos pelo IEM, como o “Estagiar Madeira”, o “Madeira Reage” ou as medidas de incentivo à contratação, têm sido apresentados como instrumentos de combate ao desemprego juvenil e de promoção da inserção profissional. No entanto, uma análise mais crítica revela que muitos destes programas funcionam como subsídios indiretos às empresas, que beneficiam de mão de obra temporariamente financiada pelo Estado sem compromisso de integração posterior.

Relatórios do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Observatório do Emprego e Formação Profissional (OEFP) indicam que a Madeira apresenta taxas de precariedade superiores à média nacional, sobretudo entre jovens e trabalhadores do setor dos serviços e da restauração. O caso do chef convertido em copeiro não é, portanto, uma exceção, mas o reflexo de um mercado de trabalho regional altamente dependente de políticas paliativas e de baixos salários.

- A questão da dignidade e da função social do emprego

A Constituição da República Portuguesa, no artigo 58.º, consagra o direito ao trabalho e impõe ao Estado a obrigação de “assegurar condições para que todos possam exercer uma atividade profissional digna e livremente escolhida”.

Ora, impor a um trabalhador qualificado um emprego de categoria inferior, sob pena de perder o apoio social, contraria o espírito constitucional de proteção da dignidade do trabalho. O emprego, enquanto expressão de cidadania e de identidade social, não pode ser reduzido a mera “ocupação remunerada” — sobretudo quando essa ocupação implica regressão social e económica.

Ao designar como “conveniente” um emprego que é, na verdade, inadequado, o Instituto de Emprego da Madeira atua dentro da legalidade, mas fora da ética do serviço público. A precariedade, neste contexto, não é apenas uma condição material — é também uma condição simbólica, que traduz a perda de reconhecimento e de autonomia dos trabalhadores perante o poder institucional.

O “Instituto do Emprego Precário da Madeira” representa, de forma paradigmática, a inversão da missão pública do Estado social. Em vez de proteger os trabalhadores e valorizar o capital humano, a política de emprego regional tem contribuído para naturalizar a precariedade e banalizar a desvalorização profissional.

O exemplo do chef de cozinha obrigado a ser copeiro sintetiza a perversidade deste sistema: o desemprego é substituído por um subemprego institucionalizado, que satisfaz as estatísticas, mas não a justiça social.

Reverter esta tendência implica uma redefinição profunda das políticas ativas de emprego, em que a prioridade não seja a “colocação” a qualquer custo, mas a integração qualificada, estável e digna. A Madeira, e Portugal, só poderão falar verdadeiramente de desenvolvimento quando o emprego deixar de ser um número e voltar a ser um direito com dignidade.

-Referências Legais

Constituição da República Portuguesa, Artigo 58.º – Direito ao trabalho.

Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de novembro – Regime jurídico de proteção no desemprego.

Portaria n.º 8-B/2007, de 3 de janeiro – Regulamenta o conceito de “emprego conveniente”.

Nota: facebook.com/reel/1181695270732727/