A vida


S olange tinha passado dia a amanhar peixe no supermercado onde ao ritmo de espadas, cavalas e outros seres marinhos gastava 8 horas do seu dia para garantir o sustento dos seus. Não era esse o seu sonho de emprego quando concluiu a licenciatura em História da Arte. Mas há que se fazer à vida e o cheiro a peixe só se estranha na primeira semana. Depois tudo é quase mecânico, habituamo-nos e pronto.

Foi já quase no fim do turno quando amanhava uma espada, que das entranhas do bicho viu algo a brilhar. Um brinco de pérola! Como é que isto apareceu aqui? Passou o brinco por água para verificar melhor e murmurou – Veermer!. Olhou para os olhos arregalados da espada e pareceu reconhecer-lhe um sorriso. Alucinava…

Já no vestiário mirou-se ao espelho com o brinco na orelha. Como é que um objeto destes vai bater às entranhas de um peixe que vive a profundidades de mais de mil metros?

Sentou-se no autocarro e cerrou os olhos como sempre fazia no regresso a casa. Sonhou com um brinco de pérola a descer, descer até à mais negra profundidade marinha e zás a ser engolido. Acordou estremunhada a tempo de tocar a campainha para sair.

As pernas pesavam como chumbo no caminho até casa. Porcaria de vida… meteu a mão ao bolso e encontrou a superfície lisa da pérola e sorriu. Abriu a porta e atirou-se para dentro do lar doce lar.

Aqueceu a janta, meteu a pequena na cama e leu-lhe a costumeira história. Adormeceu primeiro que a pequenita. Sonhou com a rapariga do brinco de pérola, em alto mar a atirar o brinco para as profundezas do abismo e uma espada preta a apanha-la.

Novo dia, a caminho do trabalho só pensava no brinco de pérola. Equipou-se para o trabalho, água por todo o lado, aquela sensação de pântano diário, entre escamas e entranhas, puxa as guelras, corta as cabeças, muito obrigado, tenha um bom dia, volte sempre. E eis que de um bodião sai reluzente uma aliança de ouro. Não pode ser, olha para aquilo incrédula. Ontem um brinco, hoje uma aliança. Olhou para o bodião e pareceu-lhe ver um piscar de olho. 

- Não pode ser, devem de estar a brincar comigo, murmurou. Olhou à volta, tudo normal. Guardou o anel como tinha feito com o brinco. Era um anel grande, de homem provavelmente. Quem seria o dono desta aliança? Algum desafortunado marinheiro, alguém que se fartou do casamento e deu destino marinho à aliança que uniu nos bons e que não resistiu aos maus momentos. Tinha sido assim com o seu casamento… mas ainda usava a aliança. Talvez devesse ir à ponta do cais e atirá-la para as profundezas do mar.

Chegada a casa, meteu-a na caixinha onde tinha deixado o brinco. Olhou os dois objetos e sentiu uma alegria imensa. Nunca tinha encontrado nada na vida e assim de repente, dois objetos preciosos. Será um sinal de que a vida irá melhorar?

- Então como é que está a Sra. Solange?

- Passou a noite agitada Sr. Doutor, só falava em alianças de casamento, brincos de pérola e peixes que engoliam joias.

- Manter a medicação… 


Enviado por Denúncia Anónima
Domingo, 2 de junho de 2024
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