H á 50 anos, a condição da Mulher nada tinha a ver com a actual, ainda que muito esteja por fazer e concretizar. Mesmo assim, já se ouvem vozes, femininas inclusivamente, a almejar o regresso ao passado, no que às mulheres, embora não só, diz respeito.
Desde o execrável livro “Identidade e família”, apresentado por outro execrável, até às abstrusas sentenças em casos de violação e assédio, proferidas também por um execrável, passando pelos sempre miseráveis casos de violência doméstica que ceifam cada vez mais vítimas femininas, vão-se multiplicando as situações que prenunciam um recuo em várias áreas da vida das mulheres.
Atentemos. Por altura do 25 de Abril de 1974, do conjunto de trabalhadores do país apenas 25% eram mulheres, sendo que apenas 19% trabalhavam fora de casa (86% eram solteiras; 50% tinham idade inferior a 24 anos), e ganhavam menos 40% do que os homens.
A Lei do Contrato Individual do Trabalho, de 1969, apresentava o seguinte articulado:
- É válido o contrato de trabalho celebrado directamente com a mulher casada.
- Poderá, porém, o marido não separado judicialmente ou de facto opor-se à sua celebração ou manutenção, alegando razões ponderosas.
- Deduzida a oposição, o contrato só pode ser celebrado ou subsistir se o tribunal do trabalho a julgar injustificada.
Para além desta condicionante, também no caso de a mulher casada, se exercesse qualquer actividade lucrativa ou comércio necessitava de ter o consentimento do marido. Por outro lado, não tinham acesso às carreiras de magistratura, diplomática, militar e polícia. Também certas profissões, como enfermeira ou, à época, hospedeira do ar, implicavam a limitação de direitos, como o direito de casar, sendo necessária uma autorização especial do Governo para ultrapassar as condicionantes.
Em 1936, o Ministério da Educação proibira as professoras de usar maquilhagem e indumentária que não se adequasse à “majestade do ministério exercido”. Só podiam casar, com a autorização do Ministro, concedida apenas desde que o noivo demonstrasse ter “bom comportamento moral e civil” e meios de subsistência adequados ao vencimento de uma professora.
Há 50 anos, o único modelo de família era o resultante de um contrato de casamento entre uma homem e uma mulher, sendo que a idade mínima para tal era 16 anos para o homem e 14 para a mulher. Se, na altura do casamento, a mulher não fosse virgem, o Código Civil previa que o marido podia repudiá-la já que o divórcio era proibido. Era o homem que detinha o poder marital e paternal sendo o “chefe de família” o administrador dos bens comuns do casal, dos bens próprios da mulher e dos bens dos filhos menores. À mulher, segundo o Código Civil e enquanto durasse a vida em comum, pertencia o governo doméstico.
O domicílio da mulher, onde era obrigada a residir, era o do marido, que tinha o direito de abrir a correspondência dela. Ela não podia viajar para o estrangeiro sem autorização do marido e calculamos que até para deslocações internas seria necessário fazer um “relatório”.
O Código Penal permitia ao marido matar a mulher em flagrante adultério, e o amante, e as filhas “desonradas”, se tivessem menos de 21 anos e vivessem debaixo do mesmo tecto, sofrendo apenas um desterro de seis meses.
Os médicos “do Estado” não estavam autorizados a receitar contraceptivos orais, cuja publicidade era proibida, a não ser a título terapêutico e, mesmo assim, a mulher não tinha o direito de os tomar contra a vontade do marido, pois este podia invocar o facto para fundamentar o pedido de divórcio ou separação judicial.
O aborto era punido em qualquer circunstância, com pena de prisão de 2 a 8 anos. Estimativas apontavam para 100 mil abortos clandestinos por ano, sendo a terceira causa de morte materna. Cerca de 43% dos partos ocorriam em casa, 17% dos quais sem a presença de profissionais de Medicina ou de Enfermagem (era uma “sorte” se alguém conhecia uma parteira), e, já nessa altura, muitos distritos não tinham maternidade (agora por outras razões, mas vai dar ao mesmo: deficiente assistência à grávida). Como é de calcular, as mães solteiras não tinham qualquer protecção legal.
Devido às várias condicionantes do casamento, em termos de protecção social, as mulheres, particularmente as idosas, tinham uma situação bastante desfavorável. A proporção de mulheres com 65 anos ou mais que recebiam pensões era muito baixa, assim como os respectivos valores.
Até perto do final da década de 60, as mulheres só podiam votar quando fossem chefes de família e possuíssem curso médio ou superior. Em 1968, a lei estabeleceu a igualdade de voto para a Assembleia Nacional de todos os cidadãos que soubessem ler e escrever.
O facto de existir uma elevada percentagem de analfabetismo em Portugal, que atingia sobretudo as mulheres, determinava que, em 1973, apenas houvesse 24% dos eleitores recenseados. Além disso, as mulheres apenas podiam votar para as Juntas de Freguesia no caso de serem chefes de família (se fossem viúvas, por exemplo), tendo de apresentar atestado de idoneidade moral.
Dados comparativos entre a década de 1970 e a de 2000, apresentavam os seguintes valores: esperança de vida das mulheres: 70,8 anos (1970) / 80,6 anos (2002); taxa de mortalidade materna: (por 100 mil nados vivos) 73,4% (1970) / 2,5% (2000); partos em estabelecimentos de saúde: 37,5% (1970) / 99,5% (2000); analfabetismo geral: 33,6% (1970) / 9,0% (2001); taxa de actividade feminina: 19% (1974) / 46% (2003); mulheres no ensino superior: 44,4% (1970-71) / 56,0% (2001).
Nas habitações, “o reino” da mulher, a taxa de cobertura de água canalizada era: 47,0% das casas (1970) / 97,4% das casas (2001); de esgotos: 58,0% (1970) / 96,7% (2001); da electricidade: 63,0% (1970) / 99,6% (2001).
Para que ninguém se esquecesse de quem é que mandava, em 1932, em todos os manuais de leitura estava incluída a seguinte frase: “Na família, o chefe é o pai; na escola, o chefe é o mestre; na igreja, o chefe é o padre; na Nação, o chefe é o governo” e Salazar declarava: “Nos países ou nos lugares onde a mulher casada concorre com o trabalho do homem (...) a instituição da família, pela qual nos batemos, como pedra fundamental de uma sociedade bem organizada, ameaça ruína”. E “Portugal é um país conservador, paternalista e – Deus seja louvado – ‘atrasado’, termo que eu considero mais lisonjeiro do que pejorativo”.
Por fim, em muitas localidades, quando uma mulher morria, os sinos tocavam menos vezes do que quando era um homem.
Com o 25 de Abril, algumas coisas mudaram: a mulher casada deixou de ter estatuto de dependência do marido; desapareceu a figura do “chefe de família”, bem como as disposições que atribuíam aos homens a administração dos bens do casal; o governo doméstico deixou de pertencer, por direito (ou obrigação?) próprio, à mulher; a residência do casal passou a ser decisão de ambos os cônjuges (e não apenas do homem); relativamente ao poder parental, a mulher deixou de deter apenas uma posição secundária, de mera conselheira, para deter poder de decisão pleno em igualdade de circunstâncias com o marido; marido e mulher passaram a poder acrescentar ao seu nome, no momento do casamento, até dois apelidos do/a outro/a.
O problema é que muitas mentalidades masculinas (e, infelizmente, algumas femininas) ainda se mantém quase como há 50 anos, tendo a mulher consciente, emancipada e livre de lutar todos os dias por uma posição igualitária na sociedade.
Por isso,
- lembra-te Mulher, quando muitos dos defensores da igualdade nada fazem para que ela se concretize;
- lembra-te Mulher, que os salários no feminino ainda são bastante inferiores aos do homens;
- lembra-te Mulher, quando ouvires discursos que apelam ao retrocesso dos direitos conquistados, como a interrupção voluntária da gravidez;
- lembra-te Mulher, quando sair mais uma notícia de mulheres assassinadas ou violadas;
- lembra-te Mulher, quando viveres de perto situações de violência doméstica;
- lembra-te Mulher de quem está na linha da frente em defesa dos direitos femininos.
Lembra-te Mulher, quando fores votar!
Fernando Letra
Enviado por Denúncia Anónima
Sexta-feira, 7 de março de 2025
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