O J.M. dá hoje destaque à destruição de uma obra de arte da autoria de Rigo 23, ocorrida na localidade da Ribeira Seca. Este episódio constitui um exemplo paradigmático do conluio entre a Igreja e o poder instituído na Madeira. A imagem criada por Rigo 23, inserida num autêntico “mar de cimento” — expressão utilizada pelo próprio artista — representa, com precisão inquietante, o rumo que a ilha parece ter tomado: um território cada vez mais dominado pelo betão, em detrimento da sua identidade, da sua paisagem e da sua memória.
Trata-se de mais um caso que confirma o velho ditado popular: “se queres conhecer um vilão, põe-lhe a vara na mão”. Neste caso, são vários os protagonistas. Os terrenos onde a obra foi instalada pertencem à Igreja e, como tal, é razoável presumir que a sua destruição tenha contado com alguma forma de autorização — paroquial ou mesmo episcopal, distinção que se torna irrelevante diante da gravidade do ato. O episódio espelha uma visão de Igreja que contrasta com os ideais de abertura e diálogo cultural que se esperariam de uma instituição com responsabilidade social e histórica. Destruir deliberadamente uma obra de arte, com total consciência do impacto público que essa ação teria, transmite uma mensagem clara: “só há lugar para quem obedece cegamente; quem questiona, deve desaparecer”.
No centro deste episódio está o atual pároco da Ribeira Seca — que acumula também as funções de pároco de Machico —, cuja atuação não é propriamente conhecida pela moderação ou sensibilidade pastoral. Ao longo dos últimos anos, este responsável autorizou a venda de vários terrenos que pertenciam à Paróquia de Machico. Ora, trata-se de património que, em grande parte, foi doado por fiéis ao longo de gerações, com o propósito de ali se realizarem obras de bem, ações de caridade e projetos de índole social. Estes bens não foram entregues à Igreja para serem alienados ao mais alto licitador, ainda para mais numa paróquia que, na época da festa do Senhor dos Milagres, recolhe dezenas de milhares de euros em promessas e ofertas da população — um sinal claro de fé, confiança e entrega, que merecia outra retribuição e respeito institucional.
A destruição da obra de Rigo 23 parece assim inscrever-se numa linha de continuidade: a transformação de bens da Igreja — outrora comuns e partilhados — em ativos transacionáveis, ao serviço de uma visão materialista, desligada da sua missão pastoral e comunitária.
É esta lógica de subjugação que, ao longo dos anos, tem sido utilizada para controlar o povo — uma lógica que embrutece, que impede o pensamento livre e crítico. Como tantas vezes dizia o falecido Padre Martins Júnior, “dá mais trabalho pensar do que rezar”. E, pelos vistos, há quem, nos círculos decisórios do Leste da ilha, se recuse a pensar. A destruição desta obra de Rigo 23 não foi apenas um atentado cultural; foi um sintoma de ignorância institucionalizada, do tipo mais perigoso — aquele que se exerce com autoridade.
Rigo 23 não é um artista qualquer. É reconhecido internacionalmente pela sua obra e está, de forma indelével, associado à imagem contemporânea da Madeira. Quem já viajou reconhece, mesmo sem saber, o seu trabalho: o painel de azulejos no Aeroporto da Madeira com as tradicionais bonecas de massa é da sua autoria. O emblemático barco em Câmara de Lobos? Também. O grande mural do quartel dos bombeiros da mesma localidade? Igualmente.
Destruir uma criação de um artista deste calibre é um ato de incultura e desprezo pelo património artístico. É permitir que a ignorância — ou, pior ainda, a arrogância de quem ignora — se sobreponha ao valor simbólico e coletivo da arte.
A Rigo 23, resta agradecer pela coragem de denunciar publicamente este atentado. É lamentável que muitos não tenham tido oportunidade de conhecer a obra em causa, mas quem conhece o seu percurso sabe que era certamente algo digno de ser preservado. Infelizmente, para alguns, a arte é uma ameaça, e a cultura, um obstáculo ao controlo.
Com figuras destas a liderar, a Igreja jamais conseguirá renovar-se ou reconquistar a proximidade das pessoas. Pelo contrário: continuará cada vez mais vazia — de gente, de espírito e de relevância.
Com figuras destas a liderar, a Igreja jamais conseguirá renovar-se ou reconquistar a proximidade das pessoas. Pelo contrário: continuará cada vez mais vazia — de gente, de espírito e de relevância.
E termino com uma certeza: sei que não sou o único a pensar desta forma. Muitos, em silêncio, partilham este desconforto e esta revolta por atentados como este um pouco por todo o lado. A todos esses, deixo um apelo simples, mas essencial — tenham coragem. Não se calem, não se resignem. Como disse um dia o Papa João Paulo II: “Não tenhais medo!”
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