Q uando pensávamos que já tínhamos visto de tudo na política local, eis que a Câmara Municipal do Funchal ultrapassa todos os limites da irresponsabilidade e do desprezo pela crise social que assola milhares de famílias madeirenses. Numa altura em que a habitação é o drama central da nossa sociedade, com jovens sem casa, idosos desalojados e famílias empurradas para a periferia, o executivo camarário toma uma decisão absolutamente revoltante e, diria mesmo, escandalosa: transformar habitação a custos controlados… em Alojamento Local.
Sim, leu bem. Numa entrega de 33 casas anunciada com pompa, bandeiras e sorrisos para as câmaras, três dessas casas destinaram-se, afinal, a alojamento local. Estamos a falar de residências cuja finalidade deveria ser dar resposta a quem mais precisa, e não alimentar um mercado paralelo, muitas vezes predador, que agrava ainda mais a crise da habitação.
Esta situação só não passou despercebida porque Miguel Gouveia, curiosamente, um dos poucos socialistas coerentes com a defesa do bem comum, no ocaso do seu mandato, decidiu denunciar esta aberração administrativa. E fê-lo com coragem, numa denúncia que, pelo seu teor, tem todas as condições para se tornar um caso de repercussão internacional.
O que está em causa aqui não é apenas mais um erro de gestão. Estamos a falar de uma distorção gravíssima da função pública da habitação, de um abuso de poder administrativo, e de um favorecimento claro de interesses privados em detrimento de centenas de pessoas que estão hoje numa lista de espera para uma casa digna.
E o escândalo adensa-se ainda mais quando se revela que a empresa de Alojamento Local beneficiada nesta operação está ligada a uma família com ligações ao Bloco de Esquerda, o mesmo Bloco que tem feito da habitação a sua bandeira. Como se explica esta contradição? Como pode uma força política bradar nas ruas contra o alojamento local enquanto, nos bastidores, lucra com ele graças a decisões camarárias coniventes?
É preciso dizê-lo com todas as letras: isto é inaceitável. Isto é repugnante. Isto tem de ser investigado a fundo.
Estamos perante uma Câmara Municipal que bateu no fundo. Um executivo que já nos habituou a práticas urbanísticas opacas, mas que agora ultrapassa todos os limites da ética pública. Quem tomou esta decisão não pode continuar a ocupar funções públicas. Quem permitiu esta desvirtuação da política habitacional num momento de emergência social, tem de ser responsabilizado política e legalmente.
Exige-se a intervenção das autoridades competentes, da Inspeção-Geral, do Ministério Público, e da Assembleia da República. Exige-se que se corrija imediatamente esta decisão e que se devolvam estas casas à função que lhes compete: acolher quem precisa, e não enriquecer quem já tem.
A crise da habitação é demasiado séria para ser tratada com leviandade ou oportunismo. O que se passou no Funchal é grave. Gravíssimo. E não pode passar impune.
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