Morre-se lentamente na Madeira


Primeiro por dentro, depois num banco de jardim.

A senhora Paulina morreu.

M as, antes de se tornar sem-abrigo, foi inquilina, vizinha, uma mulher que vivia com dignidade. Caiu nesta situação porque o senhorio aumentou a renda e ela não conseguiu pagar. Assim, perdeu a casa e passou a viver na rua.

E com a sua morte morreu também outra esperança de que alguém, em algum momento, olhasse para além das suas feridas do rótulo de “sem-abrigo”, da dureza de uma vida marcada pela solidão, pelo álcool e pela dor.

A Paulina é um exemplo.

Comprava a sua própria medicação.

Mas fugia dos centros de acolhimento porque não podia entrar alcoolizada. Ora, o álcool era o anestésico contra o frio,a dor e a solidão não um capricho.

Um dia normal, das minhas visitas a estas pessoas , deparei-me com a Paulina apática, tinham roubado a sua bolsa e com ela toda a sua medicação. Mas não havia quem a levasse para o hospital. Tinha caído, não tinha forças, foi com a ajuda de um amigo que ajudou-me, e fomos à polícia, pois ela estava a pôr em causa a sua saúde.

Lá conseguimos levá-la para o hospital, mas a única coisa que ela me pediu foi: “ Não me deixes sozinha”.

E não deixei.

Durante dias, acompanhei-a em visitas no hospital, numa maca no corredor. Na sobriedade desses dias, vislumbrou um futuro diferente , queria ser novamente a Paulina que conhecia, digna, livre, cuidada. Ela era bonita, de olhos azuis profundos, sonhadores, cheios de histórias e mágoas.

Nos dias que passámos juntas no hospital, falava com orgulho do passado, contava como gostava de pintar as unhas, de arranjar o cabelo, de se vestir bem , pequenos gestos de cuidado que lhe devolvem identidade e dignidade, mesmo quando o resto do mundo a tornava invisível.

Tudo indicava que a sua vida podia mudar. Bati a várias portas dentro do SESARAM para que fosse internada, porque disseram-me que era mais fácil ser uma cidadã a pressionar do que as associações, sofriam represálias.

Fiquei ainda mais chocada, ainda mais revoltada.

Depois de várias conversas enquanto esteve internada, a Paulina quis fazer um tratamento para o álcool. Pediu ajuda.

Mas recusaram-lhe o internamento, oferecendo apenas acompanhamento ambulatório.

Na altura perguntei:

Como é que se pode exigir abstinência imediata a quem vive debaixo de chuva, na rua?

Como é que esperam que uma pessoa sem casa, sem rede de apoio, com tantas feridas visíveis e invisíveis, consiga cumprir um tratamento ambulatório?

O dia em que ela fugiu, e o castelo de cartas desmoronou.

Foi precisamente o perpetuador dos seus abusos físicos que a ajudou a fugir, e os serviços hospitalares só se aperceberam da sua ausência três dias depois, quando me telefonaram a dizer que ela tinha alta e se era para acionar os serviços sociais, já tinha deixado tudo esclarecido, com o consentimento dela, dali ela só saía para fazer um tratamento ao álcool, e pelo menos estava segura.

Como é possível isto acontecer num hospital se esta senhora precisava de medicação diária?

Costumam dizer que nem todos querem sair da rua. Essa frase tornou-se um álibi conveniente para justificar a falta de respostas adequadas. Mas é falsa ou, pelo menos, profundamente injusta.

Dizer que “não querem sair da rua” é ignorar que o que lhes é oferecido muitas vezes não corresponde a uma verdadeira solução.

A questão nunca foi a falta de vontade de sair da rua. A questão é a falta de respostas humanas, estruturadas e adaptadas à realidade de cada pessoa.

O Campo da Barca depois da Paulina

Hoje passei no Campo da Barca. Fui ver com os meus próprios olhos, mesmo tendo a certeza de que era ela que tinha morrido pela descrição,mas também fui para conversar com quem lá ficou. Todos procuram um banco ou um canto de relva no jardim, à sombra, onde possam descansar da dureza da vida.

Ali abracei os amigos que cuidavam e protegiam a Paulina. Chorámos juntos. Mas não era só um choro de tristeza. Era também um choro de libertação, porque, de alguma forma, o sofrimento dela tinha finalmente acabado.

E lanço um apelo direto ao Governo Regional da Madeira e à Câmara Municipal do Funchal: os investimentos anunciados — milhões de euros em estratégias e programas — não são suficientes enquanto continuarem a falhar às pessoas mais frágeis, como a Paulina.

É preciso que essa verba se traduza em AÇÃO!

E a Câmara Municipal do Funchal, o que fez para além de criar um documento com 300 páginas ,uma suposta equipa técnica que aparece, e um gabinete para dar falsas esperanças a estas pessoas?

A Câmara Municipal do Funchal fez propaganda, dizendo que estava a ajudar. Trouxeram televisões para exibir um programa municipal para as pessoas em situação de sem-abrigo, referindo-se a este casal. Mas nenhum dos sem-abrigo do Campo da Barca presenciou esse apoio no dia-a-dia. Só chegaram as câmaras de televisão para a propaganda.

A autarquia investiu, em 2024, 350 000 € nessa problemática e prevê, em 2025, aumentar esse valor para cerca de 1 400 000 € - um acréscimo de 400 % em relação a 2022 e 2023 - perfazendo um investimento total superior a 2 milhões de euros até 2025.

A Associação dos Pobres faz o que pode. Mas não pode tudo. Não tem recursos financeiros nem humanos para cobrir todas as pessoas que vivem na rua. As poucas camas que existem dão aconchego a alguns, mas não chegam para todos. São as pessoas da APP que andam verdadeiramente na rua.

Que a sua morte seja um ponto de viragem, obrigando as instituições a deixarem de falhar sempre nos mesmos: os invisíveis.

Porque o que mais mata não é o álcool, não é o frio, não é a doença.

O que mais mata é a indiferença.

Que descanse em paz, senhora Paulina. Nunca esquecerei os seus olhos, nunca me esquecerei daqueles dias em que, por instantes, ela recuperou esperança.