A ascensão de São Vicente


A Câmara de Todos, ou a Câmara de Alguns?

A pós mais de 40 anos de democracia, o Concelho de São Vicente, na Madeira, atravessa uma era política inusitada, marcada pela ascensão de um partido que, desde a sua fundação, vem sendo um ponto de controvérsia. A recente vitória do CHEGA na câmara municipal deste pequeno concelho não é apenas um reflexo da mudança no cenário político local, mas também um reflexo de um momento sombrio da nossa história recente. A política de polarização e divisão tem raízes profundas, e a eleição de figuras políticas de extrema-direita não é um fenômeno isolado, mas sim um sinal de alerta. Agora, mais do que nunca, é necessário refletir sobre o que realmente está em jogo para a nossa democracia.

Com a vitória do CHEGA, a Câmara Municipal de São Vicente experimenta uma mudança drástica no seu funcionamento e na sua composição. O que parecia ser uma oportunidade de renovação, em que o povo se levanta para “romper com o sistema”, na verdade, começou a se desenrolar com características que nos lembram de um passado que muitos prefeririam esquecer. A crítica à sua ascensão é clara, com um tom de desilusão e de alerta para a sociedade. Afinal, ao invés de promover um espírito de unidade e progresso, as ações do CHEGA parecem mais alinhadas a um cenário de "substituição", onde os antigos funcionários, muitos dos quais pertencem a uma classe trabalhadora e experiente, veem-se empurrados para fora em favor de um novo grupo, o qual, na maioria das vezes, não possui qualquer experiência relevante.

O Novo ‘Tacho’ de São Vicente

É difícil não ver o movimento do CHEGA como uma representação clássica de um jogo de interesses, onde aqueles que antes estavam à margem, agora se colocam no centro. A acusação de que a política local do CHEGA se resume a garantir empregos para seus próprios aliados e para a sua base de apoio não pode ser ignorada. As contratações de amigos e familiares, que em qualquer outra época seriam vistas como nepotismo descarado, são agora apresentadas como um "renascimento" ou uma "nova era de oportunidades". Mas será isso realmente uma renovação ou apenas uma continuação de uma velha prática de favorecimento político?

A implementação de medidas que favorecem aqueles ligados ao partido e a substituição de antigos funcionários por “novos rostos” traz à tona uma questão importante: será que a competência foi realmente priorizada, ou estamos apenas a assistir a uma troca de favores? Aquelas pessoas que até agora estavam desempregadas, muitas delas por falta de qualificação, são agora colocadas em cargos públicos sem que se faça qualquer menção à sua capacitação profissional. O objetivo parece ser claro: preencher cargos com simpatizantes do partido, independentemente da experiência ou mérito.

A crescente alegação de que “o CHEGA vai colocar os filhos dos seus apoiantes nas Juntas de Freguesia” é um reflexo dessa política de nepotismo disfarçada de mudança. O favoritismo, disfarçado de “tradição”, parece ser uma das grandes marcas do novo regime local, e muitos já percebem as falácias que permeiam a proposta de mudança que o partido vendia. A promessa de um futuro mais justo e igualitário revela-se, para muitos, uma ilusão, onde aqueles que são mais próximos ao partido têm mais acesso a benefícios do que os verdadeiros cidadãos de São Vicente.

O Desafio da Honra e da Dignidade

Mas o que é ainda mais triste do que as ações do CHEGA são as reações de muitos cidadãos locais. Vemos celebrações e comentários entusiásticos, como se o fato de alguém finalmente chegar ao poder fosse, por si só, uma vitória da democracia. No entanto, o que muitos parecem esquecer é que democracia não se resume a eleger um partido, mas a eleger aquele que realmente tem um compromisso com os valores da justiça, da igualdade e da dignidade humana.

O entusiasmo desmedido por parte de alguns, misturado com o fanatismo político e a política de “nós contra eles”, não é uma marca de democracia genuína, mas de uma sociedade manipulada e encantada por promessas vazias. O discurso do CHEGA e a sua retórica populista não são apenas enganosos, mas extremamente perigosos. “Os outros são os inimigos”, dizem eles. “Nós somos os salvadores do povo”, proclamam. E assim, uma vez mais, o medo e a desinformação entram em cena. Quando a retórica assume proporções de "divisão" e "oposição absoluta", os valores que realmente importam para a democracia começam a enfraquecer.

Ao usar um discurso de vitimização, o CHEGA tenta convencer os cidadãos de que são os únicos capazes de “salvar o país” das garras de uma suposta elite corrupta. No entanto, a realidade é muito mais complexa do que isso. A solução para os problemas locais e nacionais não reside em vender a ideia de que um “salvador” pode emergir de um grupo isolado. A verdadeira solução está em reconhecer que todos, independentemente de sua posição política, merecem ser ouvidos e que as diferenças de opinião não devem ser tratadas como ameaça.

O Circo Político

E, enquanto o CHEGA sobe ao poder, vemos um espetáculo grotesco de manipulação e de polarização. O ato de uma caravana de carros, feita por seus apoiantes na calada da noite, é mais uma prova de que o CHEGA não compreende o significado da responsabilidade pública. Se um partido precisa fazer “barulho” para demonstrar a sua força, será que não está já a ser enganado por uma imagem de poder ilusória? É preciso lembrar que, quando uma força política só é capaz de criar divisão e desrespeito, o que vemos não é um “avanço” para o futuro, mas sim uma regressão a tempos em que a política se resolvia na base da gritaria e da imposição.

E a ironia aqui é palpável. Quando um grupo se envolve em discursos de ódio, divisões e promessas vazias, a sua base de apoio não está a ganhar poder — está, na verdade, a enfraquecer a própria essência da democracia.

O Futuro Incerto

Mas, como diz o ditado popular, “quando o porco toma o castelo, não é o porco que vira rei, mas o castelo que se transforma num chiqueiro”. Essa metáfora bem ilustra o que muitos receiam para São Vicente: não será a política local transformada em um espaço de verdadeira participação e avanço social. Pelo contrário, a câmara e as juntas de freguesia podem se tornar um reflexo de interesses particulares, com um espectro de governantes que privilegiam o poder e as relações pessoais.

Quando a era do CHEGA chegar ao fim, talvez muitos de nós possamos lamentar o erro cometido nas urnas. Mas, por enquanto, é preciso reconhecer a fragilidade do momento. Afinal, quando um palhaço toma o palácio, o que fica não é um reinado, mas um circo.

São Vicente vive um momento único e turbulento. E o que nos resta agora é vigiar, questionar, e não permitir que o castelo se transforme em um chiqueiro. Porque, no final, só a democracia verdadeira — com respeito, com ética e com compromisso — é capaz de garantir que todos, sem exceção, possam viver dignamente.