A obra, o parque e a coincidência


Na Madeira, há uma coerência admirável na forma como o dinheiro público circula, raramente segue o caminho da necessidade, quase sempre escolhe o da conveniência.

E sta semana que passou, o exemplo é de manual, dinheiro dos contribuintes para construir um parque de estacionamento de estruturas militares. Nada de novo. O detalhe pitoresco surge quando descobrimos que a empresa que vai executar a obra pertence a um sócio da empresa de autocarros de turismo que… estaciona nesse mesmo parque.

Parece ficção, mas é só gestão madeirense.

É o tipo de história que, se não envolvesse fundos públicos, até seria engraçada. Um enredo tão bem alinhado, o Estado paga, o privado estaciona, e todos fingem que é uma feliz coincidência.

O cimento é sempre mais urgente do que o cidadão.

Enquanto se financiam parques de betão, o saneamento básico continua a ser um luxo fora do alcance de muitos madeirenses. Há bairros onde o cheiro do esgoto é o despertador da manhã.

As ETARs, quando existem, estão cansadas e a pedir reforma há décadas. E os espaços verdes, esses raros oásis urbanos numa ilha originalmente cheia de floresta, vão sendo substituídos por parques de estacionamento — porque na Madeira parece que a prioridade é estacionar, não respirar.

Se a mesma pressa que há em aprovar obras “coincidentes” existisse para resolver problemas reais, o arquipélago já teria saneamento digno, praias limpas e cidades verdes.

Mas não, o investimento continua a preferir o betão, a obra visível, o favor político à responsabilidade pública.

O mais curioso é que, quando questionados, os responsáveis falam de “desenvolvimento”, de “infraestruturas estratégicas” e de “melhoria de serviços”. Expressões belas, redondas, cuidadosamente esvaziadas de significado.

O que nunca dizem — e talvez fosse mais honesto — é que estas decisões servem sempre os mesmos.

O progresso não se mede em metros quadrados de alcatrão, mas em litros de água limpa, metros de saneamento, e árvores plantadas.

Até lá, continuaremos a assistir a este teatro de coincidências entre betão e descaramento.

Há quem chame a isso “governar”. Tem vergonha na cara Miguel Albuquerque!