H á alturas em que a memória coletiva precisa de um empurrão. E, curiosamente, o processo Ab Initio poderia surgir agora, às portas das autárquicas, como uma espécie de lembrete judicial, um “não se esqueçam” do que foi a última equipa que passou pela Câmara do Funchal.
Durante meses, o caso está adormecido nos bastidores, soterrado sob comunicados, desmentidos e silêncios seletivos. Mas poderia voltar à superfície, como quem vem arejar a casa antes de uma nova campanha.
Não é preciso dizer nomes. O povo lembra-se.
Lembra-se das manchetes, das buscas da Polícia Judiciária em gabinetes camarários, em empresas amigas, em departamentos estratégicos. Lembra-se das fotografias de pastas a sair de edifícios públicos e das caras tensas a fugir das câmaras. Lembra-se da perplexidade de perceber que a autarquia, o coração administrativo da cidade, tinha virado cenário de investigação.
E agora, com as eleições à porta, o Ab Initio poderia reaparecer como um espelho desconfortável.
Um espelho que muitos gostariam de partir, mas que insiste em refletir a verdade: aquela Câmara não caiu por acaso. Caiu porque o poder confundiu-se com propriedade, e a governação com gestão de interesses.
Enquanto os candidatos falam de “estabilidade” e “continuidade”, o processo recorda-nos o preço dessa estabilidade e o tipo de continuidade que ela costuma garantir.
Seria bom que o povo recordasse, sim — não por vingança, mas por higiene democrática.
Porque a memória, na política madeirense, tem o péssimo hábito de ser curta. E quando o esquecimento se instala, o poder reincide.
O Ab Initio não é só um processo, é um lembrete do que acontece quando a confiança pública é tratada como património privado.
E se o seu ressurgimento acontecesse agora seria uma coincidência providencial — porque a democracia, por vezes, precisa que alguém bata à porta do passado para o povo abrir bem os olhos antes de votar.
Seria quase pedagógico, vem recordar aos funchalenses o que foi aquela última passagem pela Câmara Municipal do Funchal — aquela que acabou não com um aplauso, mas com o som seco das botas da Polícia Judiciária a subir escadas e abrir gavetas. E por mais que hoje se repita a palavra “estabilidade”, a verdade é que o Funchal não precisa de estabilidade — precisa de memória.
Porque só quem se lembra do que aconteceu pode escolher com consciência o que quer que aconteça a seguir.
Seria fácil deixar o passado no esquecimento. É isso que o poder sempre espera — que o tempo apague o incómodo.
Mas o Ab Initio veio lembrar que há histórias que o tempo não consegue enterrar, por mais camadas de propaganda que lhes coloquem em cima. O Ab Initio é mais do que um processo. É um lembrete.
Um lembrete de que o poder, quando se sente intocável, tende a esquecer que a cidade não é um negócio — é uma comunidade.
E que a Câmara do Funchal, outrora palco de buscas e suspeitas, não pode voltar a ser a mesma casa com os mesmos protagonistas e as mesmas práticas, apenas com nova tinta na fachada.