O mito do tempo de Salazar.


D izem que no tempo de Salazar não havia corrupção, nem criminalidade, nem insultos na política. Pois claro que não havia! Não havia liberdade de imprensa para denunciar. Não existiam tribunais independentes para julgar. Não havia partidos para se enfrentarem. O silêncio era garantido à força da censura e do medo.

O regime construiu uma aparência de ordem à custa da repressão. A estabilidade era a de uma tampa bem fechada sobre um país que fervilhava em silêncio. As pessoas não eram escolhidas pela competência, mas pela obediência cega. O lema “Deus, Pátria e Família” servia de pretexto moral para legitimar um sistema que confinava o povo à pobreza e o pensamento à obediência.

As escolas existiam, sim, mas o regime nunca quis um povo instruído. A instrução era um privilégio de poucos; o analfabetismo era funcional à submissão.

A saúde pública era mínima, o saneamento inexistente em grande parte do país, e a dignidade humana dependia da caridade e não dos direitos.

Os jornais “respeitavam-se” porque respeitavam a tesoura da censura. A informação era filtrada por quem decidia o que o povo podia ou não saber. A propaganda substituía o debate. A ausência de insultos na política não era sinal de civismo, mas de silêncio obrigatório: não havia política, havia um chefe vitalício e os seus fiéis bajuladores.

NNão havia criminalidade porque o maior crime, pensar livremente, era castigado. As prisões estavam cheias de intelectuais, sindicalistas, estudantes e democratas. A PIDE vigiava, torturava e calava. A paz social era a paz do cemitério.

É fácil dizer que “não havia problemas” quando tudo era varrido para debaixo do tapete e quem protestava acabava preso, exilado ou morto. O regime prometia ordem e moralidade, mas entregou atraso, miséria e isolamento internacional.

Salazar deixou um país empobrecido, rural e resignado, sem direitos laborais, sem liberdade política, sem futuro. Portugal chegou a 1974 com uma taxa de analfabetismo vergonhosa, uma economia estagnada e milhares de jovens sacrificados em guerras coloniais absurdas.

Quem hoje suspira pela ditadura não tem saudades da verdade, tem saudades do chicote. Confunde autoridade com justiça, silêncio com paz, medo com ordem. Recordar o Estado Novo com saudade é negar o sofrimento de quem pagou com a vida o direito que hoje temos de falar livremente.

A democracia não é perfeita, mas é a única que permite corrigir os seus próprios erros. O salazarismo não tolerava sequer a ideia de mudança. Preferia o país quieto, obediente e ajoelhado, uma nação inteira com medo da sua própria sombra.

Porque a verdadeira ordem não nasce do medo. Nasce da liberdade.