Há terras onde meter o carro em cima do passeio dá logo multa. E depois há o Funchal style: onde estacionar no passeio já é folclore, tradição popular, quase um bailinho motorizado.
L isboa, por exemplo, inventou a EMEL. Atualizou regulamentos, criou zonas, escalões, instrumentos. E, num acto de rebeldia contra a tradição administrativa portuguesa, até pondera premiar trabalhadores pelo desempenho. Um fiscal da EMEL pode, teoricamente, ser reconhecido por trabalhar bem. No setor público. Em Portugal. É material para estudo científico.
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Depois há o Funchal.
No Funchal, o regulamento de estacionamento da Câmara ainda vive em 1996.
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É uma peça histórica, devia estar
emoldurada na Sala da Assembleia Municipal, com legenda: “Exemplar raro de
regulamento que sobreviveu intacto à realidade”.
Desde então apareceram trotinetes
(artigo de 2023 mas prática recorrente);
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| 3 - Link da Notícia: “Confiança” queixa-se de que o Funchal está “semeado” de trotinetes |
Alojamentos Locais com ruído, mas sem meios para fiscalização:
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Rent-a-cars estacionados em cima do passeio (com estacionamento por baixo):
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| 5 - Link da Notícia: "Abusos de estacionamento de Rent-a-Car no passeio público" |
O regulamento? Continua ali, firme, imperturbável, como um funcionário antigo que ninguém tem coragem de reformar.
No meio desta arqueologia normativa, aparece a FrenteMar. À primeira vista, vemos coletes verdes com a inscrição “Fiscalização FrenteMar” e pensamos: “Finalmente, alguém impõe ordem”. Depois observa-se melhor: a missão é sobretudo ver se a viatura tem talão, app ou dístico. Se está em cima do passeio, numa curva, a bloquear passagem de peões ou carrinhos de bebé, isso já entra noutra dimensão metafísica: aí a Câmara liga à PSP Trânsito para vir com o bloqueador. Terceirização da vergonha, digamos assim.
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| 6 - Link da Notícia |
Num suposto parquímetro. Vendo isto por outros olhos, poderia ser receita a entrar na Câmara Municipal do Funchal.
A imagem é quase sempre a mesma: praça cheia, turistas, rent-a-cars pousados como se fossem decoração urbana, e um bloqueador amarelo a brilhar no meio da selfie. O espaço público transforma-se num escape room jurídico: ninguém percebe muito bem quem é que manda no quê, mas há sempre alguém a pagar qualquer coisa… nem que seja só o estacionamento mínimo.
A ironia é que a FrenteMar está sentada em cima de uma mina de ouro: frentes marítimas, zonas premium, pressão turística máxima. Podia ser uma empresa municipal rica, robusta, a gerar receita séria com gestão de estacionamento estruturado, concessões inteligentes, passes combinados, estacionamento + piscinas + eventos, tarifários dinâmicos à séria. Em vez disso, vive quase como uma bilheteira glorificada de piscinas públicas. O potencial está todo lá, estendido na frente-mar, ao lado das espreguiçadeiras: falta é o pequeno detalhe de um enquadramento regulamentar moderno que transforme caos em modelo de negócio sustentável.
E aqui entra a parte deliciosa: a Câmara “só atua conforme os regulamentos”. Frase impecável, digna de manual de Direito Administrativo. O problema é quando os regulamentos faltam ou estão cristalizados em 1996. Sem regulamento atualizado de circulação, trânsito, estacionamento, alojamento local, o que é que acontece?
Trabalha-se para o boneco. E o boneco, neste filme, é uma mistura de regulamentos velhos, processos que morrem no jurídico e uma Justiça que, nesta área, funciona mais como rumor do que como realidade. No fim, a mensagem prática é clara para quem estaciona onde quer: arrisca, o pior que te pode acontecer é… nada de especial.
Vem então a pergunta inevitável: o que fará o novo executivo a isto? Vai enfrentar o vespeiro dos regulamentos, atualizar seriamente o quadro normativo do estacionamento, da circulação, do trânsito, dos AL – ou vai limitar-se ao clássico ritual do poder local moderno: mudar o logótipo, o slogan, renovar o Facebook institucional e anunciar “novas medidas” que acabam numa gaveta digital com o nome “a rever”?
A cena está quase escrita: grupo de trabalho, reuniões, powerpoints, um relatório sólido… que depois ninguém se lembra de transformar em regulamento efetivo.
O que temos é o circo habitual: comunicados reciclados da autarquia, notícias sobre o último arraial, polémicas de redes sociais e, de vez em quando, um fait-divers de trânsito quando há sangue, sirenes ou vídeo dramático.
Seria interessante ver jornalismo local com ambição académica: gente que estuda, cruza dados, escreve com factos e sem gralhas, desmonta o impacto económico da não-ação, mostra como está falta de regulamentos.
A cidade vende-se como “sempre melhor”. Mas, no que toca a trânsito, circulação, estacionamento e alojamento local, ficamos com a sensação amarga de que “sempre melhor” é mais promessa de outdoor do que compromisso regulatório. Estará JPP atento a isto além dos supermercados? Ou Chega além do escrutino do PDM? Fiquemos atentos a cidade que queremos.






