N a Madeira dos dias de hoje, onde a política se confunde com entretenimento e o poder com palco, assistimos a um espetáculo tão grotesco quanto revelador: o Presidente do Governo Regional entrevista um cantor do regime.
Sim, senhoras e senhores, o mais alto representante da Região, figura máxima do poder executivo, desce ao palco da encenação digital para promover, com ares de conversa de café, um artista alinhado com a máquina que o sustenta. É como se Salazar tivesse inventado o podcast.
Chamam-lhe cultura. É propaganda disfarçada. Um exercício de vaidade mútua onde a arte é amordaçada e a crítica varrida para debaixo do tapete da conveniência. O cantor sorri, diz as palavras certas, e o presidente balança a cabeça como quem ouve um hino de fidelidade.
Não se fala da miséria que atravessa a classe artística. Não se aborda a precariedade dos músicos, nem a cartelização dos palcos, nem a concentração dos cachets em meia dúzia de nomes escolhidos a dedo, sempre os mesmos, sempre domesticados. Não se fala da perseguição silenciosa a quem ousa discordar. Nem da asfixia criativa que se instalou nesta ilha feita vitrine de um turismo empacotado e sem alma.
O presidente não entrevista. Aprova. Legitima. Apadrinha. E, com isso, desautoriza toda uma geração de criadores livres, incómodos, insubmissos. Aqueles que não se sentam à mesa do poder, mas continuam a criar, a resistir, a existir.
É, no fundo, um ato simbólico de dominação cultural. Um gesto de quem diz: “vejam, esta é a cultura que aprovo, esta é a voz que merece palco.” E todas as outras? Ignoradas, invisíveis, esmagadas pela lógica do compadrio e da bajulação.
Esta não foi a única conversa. Mas foi uma delas. Tratamentos preferenciais? Claro que existem. E todos sabem. Artistas que se sentam à mesa do poder têm sempre o palco garantido, têm sempre a atenção da câmara, têm sempre a aprovação do regime. E quem não canta a mesma canção? Quem se atreve a desafinar? Esses continuam no escuro.
Mas não se trata de atacar o artista, que, como qualquer um, busca uma oportunidade num sistema onde as portas se abrem apenas para os que sabem alinhar no coro. O problema não é o cantor que se adapta. O problema está na falta de alternativas para aqueles que se recusam a tocar essa mesma música. Quem não é aprovado, quem não é parte do “clube”, é empurrado para as margens, marginalizado, e, como resultado, perde a oportunidade de ser ouvido.
Eu assisti a esta entrevista, e o que vi foi mais do que um simples momento de conversa entre dois aliados. Foi um retrato de como a cultura se torna instrumento de controle. Não é um espaço para o contraditório, para o novo, para o inquietante. É um espaço cuidadosamente ocupado por aqueles que não ousam questionar. Aqueles que sabem que, para sobreviver, precisam apenas de um microfone e a bênção do poder.
Isto não é uma entrevista. É um espelho deformado da cultura institucional. É o poder a usar a arte como bibelô. Um trovador que canta para o rei e, em troca, recebe os favores do reino. Os restantes? Podem afinar as guitarras no vazio, ensaiar para o silêncio, resistir no escuro.
A Madeira merece mais. Merece cultura viva, crítica, plural. Merece artistas que não tenham medo de morder a mão que os tenta calar. E políticos que saibam o seu lugar: governar, não apresentar talk shows.
Enquanto isso não mudar, continuaremos a ver esta triste farsa: o presidente a entrevistar o seu artista preferido, como quem acaricia a sua mascote fiel em público, enquanto, nos bastidores, o resto da cultura apodrece em silêncio.
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