H á fenómenos que merecem ser assinalados, não tanto pelo seu valor intrínseco, mas pela forma como revelam uma tendência social e política preocupante: a glorificação automática de figuras públicas logo após a sua morte. Não obstante o respeito devido a qualquer perda humana e os votos sinceros de condolências à família de Emanuel Vasconcelos Jardim Fernandes, importa separar o tributo pessoal da análise histórica e política.
Nos últimos dias, tem-se assistido a uma tentativa de o elevar a herói regional, e até nacional, quando a verdade, despida de adereços, é substancialmente diferente. Jardim Fernandes foi, durante décadas, um rosto do Partido Socialista na Madeira. Esteve presente na primeira legislatura regional, mas nunca deixou marca que se possa considerar estrutural ou decisiva para o futuro do arquipélago. A sua carreira política foi feita mais de presenças do que de ações; mais de consentimento do que de combate; mais de manutenção de posição do que de defesa de princípios.
Enquanto advogado, trabalhou lado a lado com Semião Mendes, figura que deixou um legado profissional, no mínimo, discutível em matéria de ética deontológica. Como político, foi um opositor apenas no nome. Na realidade, limitou-se a ser um facilitador tácito de quem governava, permitindo ao PSD exercer o poder a seu bel-prazer. Nunca apresentou uma estratégia política com impacto na sociedade madeirense e, desafiando a memória dos leitores, dificilmente se encontrará uma medida, proposta ou decisão de relevo associada ao seu nome.
A sua passagem pela Câmara Municipal do Funchal como vereador com poderes executivos não deixou rasto de relevância política. Como eurodeputado do PS, o balanço não foi mais do que uma nota de rodapé irrelevante no contexto europeu.
No plano pessoal, era conhecido por cultivar um “síndrome de Deus”: acreditava que o simples facto de ser político lhe conferia privilégios em qualquer circunstância – de um almoço em família a uma viagem. A postura era a de um nobre autoproclamado, quando o que devia era um pedido de desculpas por ter sido, durante toda a sua vida pública, um utilizador da política para benefício próprio, e não um servidor do interesse coletivo.
Não surpreende, por isso, que as palavras agora proferidas por todos os quadrantes políticos sejam tão uniformes. Não são testemunhos de um legado político robusto, mas antes vénias a um malabarista do sistema, que soube garantir a sua permanência na engrenagem, agradando a gregos e troianos. Nada se lhe conhece em termos de intervenção social significativa, de postura solidária ou de combate político genuíno.
Lamentar a morte é um dever humano. Mas transformar a ausência de obra numa construção mítica é um erro histórico. Emanuel Jardim Fernandes foi, acima de tudo, um produto e um beneficiário do regime que, em teoria, dizia combater. E é precisamente por respeito à memória coletiva e à seriedade da política que importa dizê-lo.
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