Bandas em saldo, cultura em ruínas


A verdade que João Bonifácio teve coragem de dizer

L i o artigo "Bandas Filarmónicas da Temu" (link) e não posso deixar de concordar com o que foi exposto. João Bonifácio teve a coragem de dizer em voz alta aquilo que muitos pensam em silêncio, e isso merece respeito. Num meio onde reina o conformismo e o receio de desagradar, a sua frontalidade é um gesto raro e necessário. A crítica que fez às bandas filarmónicas não foi gratuita; foi fundamentada e urgente. É tempo de olhar para dentro, reconhecer os problemas e devolver dignidade a um movimento que merece mais.

João Bonifácio faz referência a uma banda de Câmara de Lobos, e talvez tenha razão. Mas o problema não se limita às terras Xavelhas. Há muito mal espalhado por toda a ilha. BASTA OUVIR. E quem ouve com atenção sabe que o que está em causa não é apenas desafinação: é a perda de respeito por uma tradição que merece ser honrada, não desbaratada.

Aproveito para colocar o dedo na ferida. Vejamos os factos: bandas com nove elementos a tocar em procissões, com um som tão desequilibrado que parece milagre os santos não caírem do andor. Novenas e arraiais que, ao longe, arrepiam, não pela emoção, mas pela desafinação gritante que ecoa pelas encostas. Não é exagero dizer que há padres que, após a procissão, devem ficar com os ouvidos a latejar, alguns já devem recorrer a tampões para se proteger, para poupar e prevenir idas ao otorrino.

Basta circular pela ilha nos fins-de-semana de verão para testemunhar verdadeiras aberrações musicais. E o mais triste é que, como nos cromos de coleção, as caras são sempre as mesmas. Muda a banda, mas os “cromos” repetem-se. São os MERCENÁRIOS MUSICAIS, que alimentam bandas sem músicos e sem formação. Algumas, por ganância, dividem-se em quatro apenas para não perder o serviço. É o “quero é o meu, que se lixe o resto”. Façamos barulho, e matemos a música.

No encontro regional de bandas, o cenário repete-se: mudanças de farda em tempo recorde, músicos que saltam de banda em banda, e uma repetição constante de rostos. Em certos casos, se as bandas atuassem apenas com músicos da casa, uma simples carrinha de nove lugares seria suficiente para transportar toda a formação até à Ribeira Brava. Agora, com o evento distribuído por vários dias, alguns mercenários poderiam montar tendas, já que voltam no dia seguinte, aproveitam que as tendas estão na moda.

Depois temos eventos como a Semana do Mar, com artistas nacionais, tudo em grande para impressionar. E no programa, uma banda que não se consegue ouvir, nem que estivéssemos isolados numa sala em vácuo. Não se compreende a insistência de padres, festeiros e entidades públicas neste tipo de escolhas. Como diz a música popular: “A esse monte eu vou subir, vou falar com a Senhora”, que, com tanta desafinação e cacofonia sonora, talvez prefira não ouvir ninguém. Não vá dar-se o caso de, em vez de bênçãos, acabar por cair do monte. O preço não pode justificar tudo, ir à Minisom sai mais caro.

E como se não bastasse, surgem bandas criadas por capricho, vaidade ou vingança. Em vez de resolverem os conflitos com maturidade, alguns preferem fundar novas bandas para alimentar o ego. Qualquer dia, teremos mais bandas do que músicos. Até os mariachis já não escapam: os egos chegaram também a esse universo, e hoje há grupos novos, fragmentados por disputas internas. Uma verdadeira sociedade dos egos, onde o protagonismo vale mais do que a arte.

Na Ponta do Sol, a Banda Municipal está ligada às máquinas, ou moribunda, por culpa da ganância de alguns e pelo surgimento de uma banda que se intitula “banda”, mas cujo nome apenas faz jus à fama de músicos bêbados e aos “tarraços”. Uma imagem degradante do músico filarmónico que circula há anos.

Aliás, basta uma pesquisa rápida nas redes sociais para perceber, de norte a sul, de este a oeste da ilha, que o que João Bonifácio denuncia não é exagero, é realidade. A doença está espalhada. As prioridades estão invertidas. Tudo vem antes da qualidade. Em vez de colaborarem, muitas bandas preferem palmadinhas públicas e, nos bastidores, recorrem a rebaixas, saldos e “amigos” comissionados para prejudicar as congéneres. É uma competição disfarçada de cordialidade, onde o que menos importa é a música.

E há outro detalhe que não pode passar despercebido: através das fotos e vídeos que circulam online, é fácil perceber a diferença entre bandas, tanto a nível sonoro como visual. O fardamento é a primeira imagem que se transmite.

Uma banda bem fardada transmite, à partida, organização e respeito. Já as bandas de qualidade duvidosa revelam-se pela falta de uniformidade. As camisas apresentam uma mistura de tons: azuis que vão do escuro ao desbotado, lado a lado com brancos que variam entre o branco puro, o branco amarelado e o branco “neoblanc”, de aparência artificial. As calças seguem o mesmo padrão de descoordenação. Umas são azuis, mas cada uma num tom diferente, azul-escuro, azul petróleo, azul deslavado. Outras são cinzentas, com variações entre o cinzento claro, o cinzento rato e o cinzento sujo.

O fardamento e o símbolo da banda devem ser respeitados, são a face pública da instituição. Quando se cortam custos, algo acaba por ser descurado, e o fardamento é, quase sempre, o primeiro a sofrer.

Este cenário não é fruto do acaso. É resultado da falta de exigência, da ausência de critérios e da normalização do improviso. A cultura musical merece mais. As comunidades merecem mais. E os músicos, muitos deles dedicados e talentosos, merecem estar em estruturas que os valorizem, não em palcos que os expõem ao ridículo.

É preciso regras, de conduta, de apresentação, de qualidade. Só assim se protege a cultura, se valoriza o trabalho dos músicos e se dignifica o movimento filarmónico. A música merece mais. E o silêncio cúmplice não pode continuar a ser a nota dominante.

João Bonifácio Berenguer não fez barulho por fazer. Criou reflexão. E isso, num meio onde reina o conformismo, é um gesto de coragem.