C hegou o Natal. Outra vez. A televisão diz “amor”, as lojas dizem “promoção” e a realidade diz “aguenta”. Aqui, o espírito natalício aparece só para tirar selfies e ir embora. Fica o resto: barulho, contas por pagar e gente que passa o ano inteiro a desejar-me o pior, mas no dia 24 veste camisola vermelha e chama-lhe tradição.
Os vizinhos são especialistas em desporto nacional, falar mal do outro. Treinam o ano todo, sem férias, com uma dedicação digna de medalha olímpica. Querem ver-me pobre, cansado e, se possível, invisível. Mesmo assim, nunca se fartam. É o milagre da multiplicação da inveja.
A família? Um conceito abstrato. Sei que existe porque ouvi falar. Ajudei quando pude, dei quando tinha, estive presente quando era preciso. Agora que preciso eu, recebo silêncio, moral barata e lições de vida dadas por quem nunca saiu do sofá. Amigos? Foram-se com o tempo, como direitos sociais mal defendidos.
Quando tenho dinheiro, aparecem logo os fãs. Sorrisos, convites, abraços. Quando não tenho, descubro que o problema afinal era eu. Ou melhor: a falta de notas na carteira. Sou novo demais para me reformar, velho demais para o mercado que diz querer jovens “dinâmicos” pagos a estágio eterno.
- Não tenho dinheiro.
- Não tenho casa própria.
- Não tenho carro.
- Não tenho família funcional.
Tenho, isso sim, uma convivência forçada com parentes tóxicos, porque a alternativa chama-se rua. Chamam a isto “estrutura familiar”. Na prática, é chantagem emocional com recibo verde.
Todos os Natais são iguais, zero paz, zero sossego, zero magia. Só sobra cansaço e a vontade de fugir para um sítio imaginário onde as pessoas respeitam pessoas. Mas fugir custa dinheiro, e dinheiro é coisa que aparece mais nos discursos políticos do que na vida real.
Vivemos num sistema que fala muito de valores e pouco de valor humano. Um sistema que acha normal que alguém trabalhe, ajude, resista… e acabe sem nada. Depois pede calma, paciência e espírito natalício.
Defino justiça assim, regras iguais, dignidade mínima e respeito básico. Não é utopia. É o mínimo. Sem isso, o Natal é só um espetáculo caro, pago por quem menos tem.
Sou só mais um Zé-Ninguém. Mas até os Zé-Ninguéns se cansam. E quando se cansam, escrevem.
