O primeiro de 50 Anos de Autonomia: concerto de Estado, plateia de vassalos


Um lugar no mundo, um sitar (Índia), um berimbau (Brasil), djembê (África), shamisen (Japão), gaita de foles (Escócia), bandoneón (Argentina), ...

O que se passou no Centro de Congressos da Madeira não foi um concerto, foi um episódio de propaganda cultural encapotada, um desfile de vaidades financiado com dinheiro público, onde os nomes habituais voltaram a brilhar… no escuro da mediocridade.

Com a Orquestra Clássica da Madeira em palco, a abrir o circo, esperava-se emoção. Mas bastava olhar para os rostos de muitos dos músicos, estrangeiros, maioritariamente, sem ligação à terra que celebravam, para perceber que estavam ali por obrigação. Expressões de frete, uma entrega de protocolo, sem chama nem contexto. Como é que se homenageia a Autonomia com quem nem sabe o que ela significa?

Depois, os NAPA — talento jovem, sem dúvida, mas com lugar garantido por decreto mediático. A interpretação de “Deslocado” foi anunciada como o auge da noite… mas a apoteose real veio logo a seguir, com o déjà vu institucionalizado da chamada “rainha do jazz madeirense”. Já perdemos a conta a quantas vezes esta senhora nos serve, requentado, o prato de “Noites da Madeira” com molho do Maestro Massena. É a 600.ª vez, e continua a vender-se como estreia.

E é esta mesma artista, protegida do regime, que há uns anos se deu ao luxo de humilhar uma canção popular que venceu o Festival da Canção. Chamou o povo de "pacóvio" com classe de vilã da matiné, desdenhou a simplicidade como se fosse sinónimo de burrice, e tratou a cultura popular como lixo reciclável. Mas agora, paga com o erário, volta com um sorriso plastificado a cantar os mesmos temas que outrora ridicularizou — canções que julgava indignas, demasiado simples, demasiado “povo”. Hipocrisia com microfone. Oportunismo com partitura. Um número ao serviço do estatuto, não da arte.

O alinhamento do concerto não foi inocente: Vânia Fernandes, Elisa Silva, os NAPA e até a filha do grande Sérgio Borges — todos eles, representantes madeirenses que venceram o Festival da Canção da RTP. Foi uma espécie de “clube dos campeões”, montado à medida de quem já tem lugar cativo, onde o mérito foi confundido com monopólio artístico. A Autonomia celebrada com quatro nomes… sempre os mesmos. E o resto da classe artística? À margem. Silenciada. Ignorada.

Não há novidade, não há risco, há um apego doentio à repetição, ao estatuto, à proteção partidária. A artista em questão foi duramente criticada há pouco tempo publicamente, no DN online, mas não aprendeu. Continua a entrar como se fosse intocável, porque é amiga do filho do Presidente do Governo. Uma espécie de professora de canto privada com certificado de “relevância cultural vitalícia”. Quem discorda? Cuidado, pode acabar no esquecimento ou pior, sem concertos pagos.

E, claro, porque não dar um espacinho à nostalgia encenada? Entra Sarah Borges, a interpretar o tema que o pai levou ao Festival em 1970. Um momento bonito… mas previsível. Tão previsível como o alinhamento das estrelas do sistema, que orbitam sempre o mesmo centro: o poder político. A cultura na Madeira está capturada. Está a ser instrumentalizada por elites que usam a Autonomia como biombo para manter os mesmos no palco, com os mesmos arranjos, com os mesmos favores.

O concerto deveria ter sido um hino à pluralidade, à coragem artística, à identidade múltipla do povo madeirense. Foi, em vez disso, um espetáculo redundante, com os figurões do costume, orquestrado por mãos demasiado próximas do poder. O público foi apenas testemunha, não da festa da Autonomia, mas do funeral da liberdade cultural.

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