D iariamente, somos presenteados nas redes sociais com verdadeiras pérolas, monólogos de ego envernizado, pequenas crónicas onde os artistas se fazem heróis da rotina e mártires da dedicação. Relatos que parecem inocentes, mas que, lidos com atenção, revelam muito mais sobre os bastidores da cultura na Madeira do que qualquer conferência de imprensa.
Entre estes episódios encantados, há sempre um ou outro que se destaca. O brunch com piano. O tributo mensal. O agradecimento caloroso à direção do hotel. Tudo muito limpinho, muito agradecido, muito… útil.
Guardiões dos brunches melódicos, sacerdotes do pequeno-almoço com piano e cronistas de si mesmos. Casos de estudo: músicos modelares, obedientes, de voz mansa e acorde previsível — aqueles que até cantam Abril sem desobedecer, que homenageiam Zeca sem jamais incomodar. Artistas que, entre a suavidade das teclas e a doçura dos chocolates Uaucacau, aprenderam a arte de manter-se eternamente nos lugares cativos à mesa do sistema.
Desde 2018 — como relembram em monólogos de Facebook — tocam piano aos domingos numa celebre quinta localizada em Santana. Não para vender mais, dizem, mas “pela satisfação do cliente”. Que generosidade empresarial tocante. Claro que nada tem a ver com favoritismo ou contrato protegido. É tudo arte, paixão… e uma pitadinha de sorte.
Nas crónicas almofadadas, até se dão ao luxo de afirmar que “trouxeram esta ideia de outro grupo hoteleiro”, revelando a dança entre hotéis como quem troca de gravata. Aqui está o retrato dos artistas-fósseis: cristalizados num circuito fechado, intocáveis, tão parte da decoração como a jarra em cima do piano. Aos sábados, toca-se X. Aos domingos, Y. A dupla maravilha da hotelaria institucional. Segunda a sexta? Descanso dos guerreiros, talvez. Afinal, há que conservar as mãos para os tributos mensais ao Elton John no RIU Palace.
E é aí, nesse mesmo RIU, que se orgulham do novo "paradigma da hotelaria", onde já não se faz apenas “gig”, mas “concertos a sério”. Dizem que os hóspedes ouvem em silêncio, pedem encores, respeitam. Que espetáculo. Mas vejamos: qual é a novidade? Que um público estrangeiro, de idade avançada, com copos pagos e espírito relaxado, se comporta com mais civilidade do que a audiência de um bar a um sábado à noite? Isso é o suficiente para definir um “novo tempo”?
Não. Isso não é revolução. Isso é rotina. Luxo rotineiro.
Porque enquanto isso, dezenas de músicos madeirenses — igualmente talentosos, mas sem cartão de fidelidade nos bastidores do poder — continuam de fora. Sem palco. Sem “brunch artístico”. Sem chocolates nem cachets. Aguardam por uma chance que não vem, porque os lugares estão ocupados por figuras como estas, sempre com uma selfie na mão e uma legenda inspiradora pronta a ser postada.
E sim, até dizem em jeito de piada que não comeram os chocolates da Uaucacau... Mas mastigam, com gosto, a fatia do bolo reservado para poucos. Quem ousa desafinar, quem levanta o dedo e diz que o sistema é injusto? Esse não toca nem ao pequeno-almoço nem à ceia. Não é o sintoma. É o sistema. E é por isso que estas situações precisam ser denunciadas. Não por despeito. Nem por azedume. Mas porque a cultura não pode continuar a ser administrada como se fosse um clube privado onde só entra quem sabe sorrir para a câmara e tocar o que agrada ao patrão.
A cultura é diversidade, é conflito, é urgência. E quando se cala tudo o que incomoda, o que sobra é só ruído de fundo — bonito, mas vazio. Foi tudo isto que levou à queda da música na hotelaria.
Há culpados. Há nomes. E há silêncio — esse silêncio dos inocentes.
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