Fé, política e coerência: quando a devoção se transforma em palco eleitoral


N a quarta feira, Machico assistiu a mais um episódio que ilustra a crescente confusão entre fé e política, uma fronteira que, em democracia, deveria permanecer inviolável. Sob o pretexto de homenagear o Senhor dos Milagres, uma das mais antigas tradições religiosas do concelho, a atual candidata do PSD à Assembleia Municipal de Machico publicou nas redes sociais uma mensagem devocional que rapidamente descamba para o discurso político, defendendo o regresso do feriado municipal à data da celebração religiosa.

A publicação, a que se soma agora a fotografia tirada à porta da Sé Catedral, onde vários candidatos do PSD participaram numa peregrinação em direção ao Senhor dos Milagres, confirma o que muitos já suspeitavam: a instrumentalização da fé popular para fins eleitorais. O gesto, aparentemente piedoso, converte-se numa encenação simbólica cuidadosamente estudada, associando a imagem partidária à religiosidade do povo.

O Senhor dos Milagres é, para Machico, uma tradição que transcende ideologias e partidos. É um momento de comunhão espiritual e de identidade coletiva. Fazer dele um ato de campanha disfarçado de devoção é desvirtuar o seu verdadeiro significado. É confundir o espaço da fé com o da governação — e, pior ainda, é não respeitar a laicidade do Estado, princípio que garante que todos os cidadãos, crentes ou não, são representados com igualdade.

Além disso, o argumento do feriado municipal perdeu qualquer fundamento prático. O atual pároco de Machico, com bom senso e sensibilidade pastoral, ajustou os horários da missa e da procissão do dia 9, garantindo que ambas decorrem fora do horário laboral. Assim, a celebração passou a realizar-se ao entardecer, permitindo a presença dos fiéis sem comprometer a atividade profissional.

Esta mudança não só torna inútil o antigo feriado, como também enriquece a dimensão simbólica e estética da procissão, que agora se realiza à noite, iluminada pelos archotes — criando um ambiente de recolhimento e beleza espiritual que nada tem a ver com o desfile apressado de outros tempos, quando os archotes ardiam em plena luz do dia.

Mas o caso torna-se ainda mais grave quando recordamos que a autora dessa publicação é também administradora da Santa Casa da Misericórdia de Machico, instituição que, paradoxalmente, atravessa um conflito laboral prolongado com as suas trabalhadoras. Enquanto se publicam apelos à fé e à piedade cristã, dezenas de funcionárias continuam a lutar pelo cumprimento de compromissos assumidos pela própria direção: o pagamento de retroativos salariais e diuturnidades referentes a 2023, e a reposição de direitos adquiridos, como o dia de dispensa no aniversário.

O Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritório e Serviços (CESP) tem denunciado publicamente esta situação, acusando a Misericórdia de faltar à palavra e de desrespeitar trabalhadoras com anos de dedicação à instituição.

Há, portanto, uma incoerência gritante entre o discurso e a prática. Não se pode apelar à fé, à moral e à tradição cristã ao mesmo tempo que se ignora a justiça social e os direitos laborais de quem sustenta o quotidiano da Misericórdia.

A verdadeira fé não se exibe em fotografias de campanha nem em publicações oportunistas. Demonstra-se através da ética, da solidariedade e do respeito pelo próximo — valores que, neste caso, parecem ter sido esquecidos.

Machico merece líderes com sentido de decoro, que saibam respeitar o sagrado e o coletivo. Usar a religião para fins políticos é um erro grave; fazê-lo enquanto se negligenciam os direitos de quem trabalha é um retrato preocupante do que se entende por valores e fé.

A religião pertence às pessoas, não às campanhas. A devoção é um ato íntimo, não uma estratégia eleitoral. E a fé do povo de Machico merece ser tratada com dignidade, não com oportunismo.