Onde a censura é mais tradicional que o Bolo do Caco


L á no meu sítio — sim, aquele entre a vaca da dona Julinha e o Wi-Fi do vizinho que só funciona quando há lua cheia — anda tudo num rebuliço que nem em noite de baile da quermesse. A aldeia não dorme, as galinhas puseram ovos quadrados de susto, e até o padre começou a ler o Madeira Opina de óculos escuros, com medo de ser confundido com um articulista.

Porquê tanto alvoroço? Porque, veja-se bem, alguém anda a escrever artigos de opinião. Escândalo! Heresia! E como é que se permite tamanha ousadia num concelho onde sempre se respeitou o silêncio cúmplice e o "deixa andar que é melhor"?

Mais incrível ainda: os antigos opositores da censura, agora no poder, passaram a usar a tesoura com a destreza de costureira em vésperas de procissão. Antigamente diziam "não nos deixam falar!", agora dizem "estes não podem dizer nada!" — evolução ou involução? Bem-vindo ao maravilhoso mundo das democracias flexíveis, onde a liberdade de expressão é como a poncha: boa para os amigos, indigesta para os outros.

Quem censura quem, afinal? E mais importante: quem é digno de escrever opinião nesta aldeia de génios escondidos e analfabetos assumidos? Porque, segundo alguns, escrever um artigo é um privilégio de meia dúzia de iluminados que passaram pelo secundário sem chumbar a Português. O resto? Gado humano, massa sem fermento, povo decorativo.

Diz-se mesmo que certos nomes “incomodam”. Ora, ser censurado por escrever é o novo selo de qualidade literária. É o Prémio Camões da política de freguesia. Quando um nome incomoda mais do que uma ambulância às três da manhã, é sinal que esse nome toca nas feridas certas — ou, pelo menos, na vaidade errada.

Ofendido estou! Ignorado mais uma vez. Nem para vilão de rodapé sirvo. Eu, que não escrevo, nem penso, mas adorava ser malfalado — só para sentir que existo! — mal sei assinar — mas adorava ver-me nas fofocas, só para fingir que sou relevante. Há gente esquecida... e depois há eu, a atualização da invisibilidade.

E não é que os ofendidos de ontem se tornaram hoje os mestres da ofensa? Os que gritavam "liberdade de expressão!" agora andam a perguntar "quem é que vos autorizou a falar?". Mas não se preocupem: este é um fenómeno global. Vejamos os manuais de História — sim, aqueles livros com palavras a mais e gráficos a menos — onde se explica o ciclo natural das democracias tropicais: começa-se a reclamar contra o sistema, depois assume-se o sistema, por fim, abusa-se do sistema.

A minha aldeia parece estar a experimentar a sua versão doméstica de uma autocracia gourmet: visualmente democrática, saborosamente censuradora. A crítica é bem-vinda… desde que venha com lacinho e chegue assinada pelo gabinete de comunicação.

E aí entra a ironia fina: toda a aldeia sabe escrever. Sempre soube. Sabem escrever recados, cartas ao senhor padre, e até murais do Facebook com mais pontuação do que muitos pareceres camarários. Mas quando escrevem artigos, torna-se um atentado à ordem pública? Que país é este onde uma opinião vale mais do que uma promessa eleitoral? Ou melhor: onde é que uma promessa vale menos do que um artigo de opinião?

Este caso é digno de estudo nas cadeiras de Teoria da Democracia e Comportamento Político. Porque aqui há tudo: censura disfarçada de protocolo, egos ofendidos com pele de cordeiro, e uma elite política que se transforma mais depressa do que a programação da RTP Memória.

Aliás, talvez estejamos a viver uma nova forma de “legitimidade eleitoral”: quem ganha eleições ganha também o monopólio da razão, da gramática, da ironia e do sarcasmo. Tudo passa a ser uma questão de “nós e os outros” — onde "nós" governamos, e "os outros" que vão escrever poemas.

Querem controlar os textos como se fossem orçamentos municipais: opacos, mal explicados e com vírgulas suspeitas. A liberdade de expressão é bem-vinda, claro... até começar a fazer comichão.

Fica, portanto, a dúvida teórica para reflexão nos cafés da vila e nos departamentos de Ciência Política da vida:Será que uma crítica bem feita dói mais que uma má governação?

E se sim... será que o problema está no texto ou no espelho que segura?

Enfim, este artigo é apenas mais um grão de areia numa praia onde alguns querem ser donos do mar. A todos os que me lêem: cuidado com as rugas de tanto rir — e com as dores nos rins de tanto engolir censura. Hidratem-se bem. A liberdade de expressão, tal como a água, não deve ser privatizada.

Pedro Bakhshiyev Henriques