São Vicente: o concelho da verdade silenciada


D iz-se que em São Vicente, este concelho verdejante e outrora promissor do norte da Madeira, as denúncias são como gritos num desfiladeiro: ecoam por momentos, mas ninguém responde. A verdade, por mais evidente que seja, choca de frente contra um muro de indiferença, medo e poder. A justiça, essa, parece ter-se rendido há muito às vontades do dinheiro e da influência. Por mais que se exponham factos, que se levantem questões, reina a impunidade. E no meio disto tudo, o eleitorado mantém-se fiel à mesma cor partidária, como se a lealdade cega fosse virtude, quando é, na verdade, o cimento da conivência.

Fala-se em surdina, e cada vez menos em segredo, de um empresário local com gosto por carros de rali, casas sumptuosas e um estilo de vida tão exuberante quanto suspeito. Um homem com ligações evidentes ao poder político local e regional. Serão os seus rendimentos compatíveis com tal nível de ostentação? Ou será apenas mais uma fachada bem ornamentada a esconder negócios pouco transparentes?

Não é caso único. A sua filha, por exemplo, viu recentemente construída uma moradia num terreno que, até há pouco tempo, era classificado como agrícola. Mas eis que, por uma daquelas "coincidências" que só acontecem a quem está bem ligado, o PDM foi alterado, e o solo passou a ser urbano. Que sorte, não é? Ou será que esta sorte se fabrica com tinta de caneta e interesses obscuros?

Dizem também que este mesmo empresário construiu uma casa para o vice-presidente da câmara, um compadre, reforçando ainda mais os laços perigosamente estreitos entre o poder económico e o político. O vice-presidente, aliás, detém os pelouros do turismo e da gestão das Grutas de São Vicente. Um acaso curioso, sobretudo quando se sabe que a sua tia é proprietária de duas unidades hoteleiras e sócia de pelo menos um restaurante no concelho. As decisões políticas que beneficiam os familiares diretos são apenas “coincidências”? Ou estamos perante mais um capítulo de um manual bem ensaiado de tráfico de influências?

E que dizer da mãe do próprio presidente da câmara, cabeça visível de uma agência imobiliária? Pergunta-se: quais são as suas qualificações? De onde surgiu o capital para fundar tal negócio? Ou será que esta estrutura serve apenas de testa-de-ferro para esconder outros nomes, outros interesses, outras contas?

Entretanto, as Grutas de São Vicente, outrora o maior ex-líbris turístico do concelho, encontram-se encerradas há anos. Oficialmente, devido a um sismo e à pandemia. Mas a verdade é mais escura do que as profundezas das grutas. Os relatórios geológicos apontam para riscos de instabilidade, sim, mas também revelam anos e anos de negligência deliberada. O Centro de Vulcanismo opera aos solavancos, com falta de manutenção e problemas estruturais evidentes. E não obstante os avultados investimentos públicos, mais de meio milhão de euros anuais, os resultados são praticamente nulos.

Pergunta-se: para onde vai esse dinheiro? Porque se continua a investir num espaço encerrado ao público, sem um plano claro de recuperação? Porque se desviaram lucros das grutas para a compra de imóveis sem qualquer retorno turístico? Estará tudo isto a ser orquestrado para enfraquecer propositadamente este património e, mais tarde, justificá-lo como “prejuízo crónico” e vendê-lo ao desbarato? Fala-se já de negociações com um empresário do “partido laranja”, primo do actual presidente, envolvido em esquemas na África do Sul e cuja origem do capital é, no mínimo, nebulosa. Primeiro comprou uma unidade hoteleira. Agora quer comprar as grutas.

Coincidência? Estratégia? Corrupção?

O mais assustador é que este padrão se repete. Obras atribuídas a amigos por valores inflacionados. Património público alienado a troco de contrapartidas risíveis. Oposição silenciada. Críticas desvalorizadas com sobranceria. E tudo isto acontece à vista de todos. O silêncio que paira sobre o concelho é ensurdecedor, não porque ninguém o saiba, mas porque poucos se atrevem a falar. Pior: muitos sabem e não querem saber.

Vivemos num concelho onde os impostos municipais são cobrados com rigor, mas cuja aplicação é feita com ligeireza. Para onde vai o nosso dinheiro? Porque aceitamos pagar sem exigir retorno? Que serviços temos em troca daquilo que nos é retirado mensalmente? Será que a função da autarquia é servir os munícipes ou proteger os negócios dos amigos?

São perguntas que não podem continuar a ser feitas em voz baixa. A indignação precisa de eco. O povo de São Vicente precisa de despertar. Não basta denunciar, é preciso agir. É necessário romper com este ciclo vicioso onde o poder se transmite como uma herança e a corrupção se mascara de desenvolvimento.

Mas há uma última questão, talvez a mais difícil de todas: que papel temos nós nisto tudo? Que parte da culpa nos cabe a nós, vicentinos, que votamos, que calamos, que viramos a cara ao lado? A apatia é o solo fértil onde floresce a corrupção. E enquanto não formos capazes de confrontar a nossa própria passividade, continuaremos a alimentar esta teia que nos devora.

O silêncio não é ouro, é cumplicidade.

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