Funchal, cidade em matracada.


O Funchal transformou-se num rancho tropical de segunda, um palco improvisado onde o bom gosto saiu pela porta dos fundos e ninguém reparou. A cidade que foi berço de poetas, músicos de excelência e cafés onde se discutia filosofia, está hoje afogada em batidas latinas recicladas, caipirinhas fluorescentes e ovações baratas a quem nem 1% de talento tem.

A emigração trouxe vozes, histórias, calor humano — sim. Mas também trouxe a confusão sobre o que é cultura e o colapso do critério. Hoje, para ser "artista" basta agitar os quadris, pegar num microfone de karaoke e berrar qualquer coisa com um sotaque emprestado. A praça aplaude. Os turistas filmam. E os madeirenses… muitos aceitam, resignados. Ou pior: alinham.

Até o empregado dança agora. Dança para atrair clientes. Dança com coreografia estudada, como se fosse parte do menu. E os clientes adoram. Batem palmas. Gritam. Tiram selfies. No final, o empregado leva uma ovação maior do que qualquer cantor de alta categoria. Um artista de verdade, que estudou, que criou, que se deu por inteiro à música — esse passa despercebido, abafado por essa palhaçada institucionalizada.

É esta a nova classe? É esta a grande mudança?

Não, isto não é classe. Isto é um circo sem poesia. É o triunfo do improviso pobre sobre a arte verdadeira. É o funeral do bom gosto com batida de reggaetón como marcha fúnebre. Uma cultura que prefere o espetáculo ao conteúdo, o efémero ao eterno, o ruído à melodia.

E a zona do mercado é apenas o retrato mais suado disso. Mas poderia ser em qualquer outro ponto da cidade. Porque o Funchal inteiro parece ter sido transformado num parque temático tropical de pacotilha — onde tudo tem que ter dança, cor e gritaria para ser considerado “vivo”.

Mas não está vivo. Está a morrer. E ninguém dá por isso, porque está tudo a dançar.

Tu olhas à volta e sentes vergonha. Raiva, até. Porque vês o que se perdeu. Porque lembras o que era. E sabes o que podia ser. E o mais duro? É saber que muitos dos nossos abriram essa porta. Faltou orgulho. Faltou visão. E agora sobra matracada.

E para terminar em grande, como quem põe a cereja podre no topo do bolo de plástico: cantam o Bailinho da Madeira em castelhano. Meu Deus… já não é apropriação — é auto-humilhação folclórica. É pegar no último farrapo de identidade que nos resta, dar-lhe um sotaque mal ensaiado, e entregar de bandeja num shot de vergonha alheia.

“El bailiño de Madeiraaaa” — dizem eles, com palmadas no cu e sorrisos que vendem qualquer coisa menos cultura. O bailinho, que era a alma de um povo — simples, puro, vibrante — agora virou sketch de resort all-inclusive. Um bailinho tropicalizado, plastificado, parido entre um mojito e uma selfie com uma anona.

É um delírio kitsch, uma traição aos nossos avós, aos ranchos que ensaiavam com seriedade, às bordadeiras de dedos calejados. Agora é tudo para turista ver, e turista rir. E os locais? Muitos batem palmas. Porque “é giro”. Porque “é animação”.

Mas quando os últimos acordes do “bailiño caribeño” soarem, alguém há-de ter ficado de pé, a dizer: “Não. Isto não é nosso. Isto é um disparate.”

É isso que eles querem para o Funchal, a nova visão? Fecham a cidade à noite, mas se for para isto, nem deviam abrir. Que fechem de vez com uma fita vermelha de "cultura encerrada por falta de critério".

Chamam a isto animação. Eu chamo desvalorização. E é isso que dói: ver que estamos a sacrificar identidade em troca de histeria fácil. Não se trata de ser contra alegria ou diversidade — trata-se de exigir qualidade, respeito e coerência com o que somos.

É esta a “nova visão para o Funchal”? Um rebranding foleiro onde tudo tem que ser barulhento, dançante e sem substância? Onde os artistas de verdade são varridos para debaixo do tapete e substituídos por gente a cantar o Bailinho da Madeira com sotaque de telenovela venezuelana?

Se for para isto, sinceramente, nem deviam abrir. Que fechem a cidade à noite e ponham uma placa: "Cultura em liquidação".

Não que o Funchal fosse perfeito antes. Somos um povo complicado, por vezes até mesmo mau uns para os outros. Mas agora, no século XXI, está pior do que nunca. O que era único, autêntico, foi diluído numa corrente de superficialidade e desrespeito pelas nossas raízes. O que antes tinha honra, agora é consumido como mercadoria, sem pudor, sem memória. E é isso que nos faz perguntar: onde está a Madeira que fomos? Onde está a Madeira que queríamos ser?

Agora, estamos a trocar a cidade noturna por uma cidade diurna, e pior, uma cidade barulhenta e poluída. Começam de manhã com bezinhadas e o estrondo dos carros a circular sem qualquer limite. O tráfico é desmedido e a qualidade de vida deteriora-se. Quando chegam barcos e turistas de segunda categoria, a cidade já perdeu o ritmo próprio, e o "culturismo" que eles trazem não é o mesmo. O Funchal está cheio de vida, mas a verdadeira vida, a da noite, já morreu. Porque, apesar de haver mais gente, há mais turistas do que nunca, e eles ocupam tudo, mas não conseguem refletir a verdadeira essência da cidade. A noite na Madeira não existe mais. Está a morrer, e a cidade, sem alma, vai para o inferno. E, sinceramente, não me dá nada. Tudo isto está a ser construído numa fachada de animação que não se reflete no que realmente importa: a autenticidade da nossa cultura e a preservação do que somos.

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